Aclamado pelo público na 11ª Mostra Ecofalante de Cinema: “Lavra” ou Quanto VALE o seu silêncio?
O diretor Lucas Bambozzi conversou com a Cine NINJA sobre o processo criativo do filme
Por Lenine Guevara
O documentário “Lavra” recebeu o prêmio de Melhor Longa, eleito pelo público da 11ª Mostra Ecofalante de Cinema, uma dos mais importantes eventos em defesa e preservação socioambiental no audiovisual brasileiro. No filme, o crime da empresa Samarco/Vale com o rompimento da Barragem de Mariana em 5 de novembro de 2015, traz de volta ao Brasil a mineira Camila Mota que busca compreender de perto o que estava acontecendo no entorno do rio. Acompanhamos o documentário “Lavra” através do olhar e narração dessa personagem, que inicia o filme afirmando:
“O que morre quando matam o rio?”
Nessa entrevista, o diretor Lucas Bambozzi conta sobre o processo criativo do filme, as questões sócioambientais e os caminhos para a chamada de ação que “Lavra” conclama.
Lenine Guevara: “Lavra” atravessa os crimes das barragens de Mariana e Brumadinho, passando pelas diversas cidades que sofreram impacto de atividades de mineração até o encontro com Ailton Krenak, que afirma que o rio Doce dormita como em um coma e os Krenak seguem de perto a vigília desse rio avô, a que chamam de “Watu”.
Para você como diretor, o que se passa entre essa declaração inicial de morte do Rio Doce e esse coma, a que Ailton Krenak se referiu?
Lucas Bambozzi: A pergunta acaba sugerindo ver o filme em camadas de informação. A camada em primeira pessoa, o relato pessoal de alguém ligado afetivamente ao rio, as pessoas que a personagem encontra, as crateras, as montanhas de Minas, o texto narrativo, os sons.
Quando o final de 2015 me encontrei em BH com a amiga, escritora e roteirista Christiane Tassis, estávamos estupefatos com o ocorrido em Mariana. A gente achava que haveria muitos documentários sobre esse fato. Queríamos garantir de alguma forma uma abordagem que avançasse sobre outras questões para além do desastre e da lama e que falasse do rio como entidade viva, que falasse sobre o pertencimento pessoal, sobre as formas de resistência, sobre o capitalismo.
A questão da afetividade ao rio atravessa o filme todo, com a ideia de topofilia, que é a sensação de pertencimento a um ambiente. A relação dos Krenak com o rio está ligada a este afeto e ao pertencimento do assentamento em Minas Gerais. Os Krenaks são parte dos Botocudos, etnia espalhada em muitas regiões do Brasil, que se confunde também com os Aimorés, e que estão hoje concentrados em parte nas margens do Rio Doce, próximos a Governador Valadares. O olhar deles, mesmo não sendo originários do território, veio de um processo de luta, reparação e construção dessa relação geracional com o rio, chamado de avô. O Ailton Krenak aponta que os crimes são o ápice de uma série de acontecimentos no vale do rio, desde a colonização.
De modo semelhante, a personagem Camila vai reconstruindo uma jornada de pertencimento e nos guiando pela rota da lama. A ideia é que houvesse uma empatia progressiva com a personagem no andamento do filme.
O texto narrativo de “Lavra” não é totalmente ficcional, o que acontece nas cenas, aconteceu de certa forma na pesquisa ou durante as filmagens. A personagem é típica de Governador Valadares e é uma espécie de alterego da Christiane Tassis que é valadarense. O valadarense tem essa cultura de ir para os EUA com a ideia de vencer na vida. Essa é uma premissa um tanto ligada ao consumo, porque a pessoa vai pra lá ter um emprego às vezes pior do que teria no Brasil, mas ganha mais e em dólares. E essa sensação de volta triunfante é um desenho que parece entranhado na vida da cidade há uns 40 anos.
“Valadares não exporta minério de ferro, exporta pessoas, sou uma das milhares que foi para o EUA em busca do sonho americano.”
Lenine Guevara: Como aconteceu esse encontro com a personagem e atriz Camila e essa escolha de fazer o documentário através da experiência e do olhar de alguém que estava longe da terra natal e que foi tomada da urgência de acompanhar as consequências deste crime ambiental?
Lucas Bambozzi: O filme tem a estrutura de um roadmovie e a Camila Mota (pessoa, atriz, personagem) atua como uma espécie de dispositivo para convidar o espectador a fazer uma viagem com ela. A fé cênica é incrivelmente suficiente para que ela tenha incorporado a personagem e ao mesmo tempo tenha vivido intensamente a realidade nas relações encontradas. O compromisso que a personagem faz em certo momento no filme é também um compromisso de vida para a atriz, para a mulher, militante cultural, Camila Mota. Não é à toa que a personagem Camila se funda com a atriz, que é mineira e aceitou fazer essa travessia proposta pelo roteiro e pela direção.
Lenine Guevara: O documentário inicia nos mostrando as consequências do crime ambiental de Mariana em sua dimensão cotidiana, revelando primeiramente a incidência do rompimento da barragem do Fundão através de situações e pessoas que não foram atingidas diretamente. Foi uma escolha narrativa apresentar o crime ambiental através de pessoas atingidas indiretamente até chegar ao encontro e casos de atingidos que tiveram suas casas e famílias soterradas?
Lucas Bambozzi: A ideia de atingido é um aprendizado. Eu mesmo me senti atingido e delinear esse entendimento se tornou uma das propostas do filme. A pessoa que pescava no Rio Doce ou tinha nele algum sustento, ou toda a atividade de agricultura familiar da região foi atingida. Um morador de um vilarejo que consumia esses produtos foi atingido em outro grau. O impacto dessa mudança, mais ou menos brusca, aconteceu com pessoas atingidas indiretamente, ainda que não seja o caso extremo da casa soterrada, da perda de familiares e de todos os bens. Essa mudança pode gerar distúrbios de todo tipo, não só financeiros, mas existenciais, psicológicos, físicos e biológicos.
Existe a ideia de que o filme conclame e uma das formas é implicar as pessoas. Elas acham que os problemas passam ao largo de suas vida. A elite pensa assim, e muito da classe média também se sente assim: o problema está longe, está lá no Rio Doce, lá no Rio Paraopeba, lá na Amazônia. Então, elas não se sentem parte dessas tragédias – agem como se não fosse com elas. E esse sentir-se parte é uma discussão articulada no filme através da ideia de pertencimento, da topofilia. E que também se desdobra em um outro conceito relativamente novo que é a solastalgia.
A topofilia diz sobre alguém que é deslocado de seu ambiente por conta de uma barragem em risco ou da construção de uma hidrelétrica, por exemplo. É quando um elo afetivo importante é rompido. Já a solastalgia é uma síndrome, resultante de uma mudança abrupta no ambiente, e acontece mesmo que a pessoa não tenha sido deslocada. É a paisagem que se desloca e produz um estranhamento profundo. São consequências que eram antes associadas a catástrofes naturais (furacões, tornados, terremotos, tsunamis). E é de fato uma síndrome, pode gerar depressão e mesmo catatonia. Mas no caso das tragédias retratadas no filme, não podem mais ser consideradas naturais. Cidades históricas como Congonhas, na região central de MG, reconhecida como Patrimônio Cultural Mundial pela Unesco, está cercada por 24 barragens controladas por 4 mineradoras. O rompimento de qualquer dessas barragens implica o fim da cidade tal como é conhecida, ou de grande parte do patrimônio. Essa ideia de que um morador precisa conviver com a possibilidade de perder tudo da noite para o dia, implica na saúde mental e coletiva da população.
Lenine Guevara: A dimensão da memória coletiva é apresentada através das próprias paisagens e morros que foram demolidos e retirados do afeto de cidades e regiões inteiras.
A importância da memória ambiental é apresentada pelo conto da reconstrução do pico do Itacolomy de Ouro Preto em um monumento em Belo Horizonte e tinha a finalidade de aplacar a saudade dos ouro-pretanos que se mudaram para a capital mineira. Na sequência, acompanhamos a viagem de Camila Mota para Itabira, cidade de Carlos Drummond de Andrade, e a proposta de refazimento do Pico do Cauê com materiais de rejeitos para devolver geologicamente o pico de volta, como uma espécie de prótese, para aplacar a saudade dos moradores. Recentemente, visitei Ouro Preto e a mina Du Veloso, reaberta em 2014 no bairro de São Cristóvão. Como sabemos a cidade é patrimônio da humanidade e é proibido qualquer atividade de mineração no entorno de 17km de Ouro Preto. No entanto, me chamou a atenção um desejo que aparece nas falas das mineradoras, citado pelo guia da mina, Douglas Silva, de que há o interesse e projeto de explorar as minas de Ouro Preto, mantendo os morros exteriormente, assim como com as fachadas das casas que não podem ter nenhuma modificação na cidade. A proposta seria preencher com uma espécie de prótese. Sua fala apareceu como uma hipótese longínqua, ainda salvaguardada pelas leis do patrimônio, mas após assistir a “Lavra”, me preocupou que em algum tempo seja posta em prática.
Você conhece mais sobre esse processo de remodelação dos morros, se há alguma implementação real de casos assim e quais consequências poderia acarretar?
Lucas Bambozzi: Em Itabira existe uma discussão sendo conduzida, porque Drummond denunciou a eliminação do Pico do Cauê como uma afronta produzida pela Vale. Então passou a circular a ideia de que a empresa iria devolver o pico. Por trás disso tem um certo tipo de cinismo, mas também tem uma questão que é o que fazer com o rejeito. O rejeito vai sendo depositado nessas barragens e sabia-se que ia dar problema em algum momento, assim como todo lixo – não reciclável. Há rejeitos que depois de sedimentados ainda apresentam capacidade produtiva de ferro, como uma borra de café utilizada ainda pode coar um novo café. Então, há alguma espécie de lucro com a sobra. A Vale colocaria parte desse rejeito que ainda contém minério de volta à montanha?
E, dizem que já vem fazendo isso de alguma forma, depositando o rejeito na cava do Pico do Cauê, já que sua produtividade caiu ou estagnou. Estão explorando o entorno do Pico. Essa ideia do recapeamento é explorada no filme com o personagem Marcos, que afirma:
“Até que ponto isso é tolerável, uma prótese, um dente?”
Tem um aspecto histórico que está relatado no livro do José Miguel Wisnik – A maquinação do mundo – que o Pico do Cauê, quando foi explorado à época do governo Getúlio Vargas, foi alvo de defesa da indústria nacional frente à exploração que os ingleses já faziam na região. O Pico do Cauê foi assinalado pelo governo e pela Vale do Rio Doce como uma espécie de mártir, que seria doado para alavancar a industrialização brasileira, impulsionar o desenvolvimentismo e o progresso. A questão é que o progresso cobra um preço depois, raramente retorna para localidade de forma limpa, e Itabira é um reflexo disso. A Vale é tanto odiada como desejada ali e gera o vínculo de dependência que precisa ser discutido com maior profundidade. No processo do filme falamos com militantes do MAM (Movimento pela Soberania Popular na Mineração) e do MAB (Movimento dos Atingidos por Barragens) e entendemos que eles não são anti-desenvolvimentistas – é bastante difícil pensar a vida contemporânea sem algum tipo de mineração. Mas cuidam dos modos de implementação, acompanhamento, retorno de investimento regional e reparação de comunidades atingidas.
Lenine Guevara: Em certo momento de “Lavra”, uma jovem de Itabirito afirma:
As mineradoras “tiram um pedaço da gente o tempo todo
pra vender.”
Acompanhamos o empreendimento do mineroduto que parte de Conceição do Mato Dentro, passando por 500 km até o mar – usando a água dos rios para drenar o minério. Nesse momento que parece coincidir com o rompimento da barragem de Brumadinho, tomamos conhecimento que mais 40 barragens estavam em ponto de rompimento e que a solução criada pela empresa foi a notificação dos moradores e a criação do dispositivos da ZAS (zona de auto salvamento) para fuga imediata a uma zona segura por conta própria pelos moradores.
Observamos a crueldade, a falta de reparação e a insistência no mesmo modelo que usa as populações e o estado. Ao mesmo tempo, as populações dessas cidades ficam reféns da empresa para a sustentabilidade e há forte dificuldade enfrentada pelos movimentos de resistência, reparação e denúncia aos crimes, que já tinham previsibilidade.
Como foi o processo de captação de imagens e a reação dos moradores e trabalhadores da empresa com o documentário “Lavra”? Observamos que há pontos de contenção da empresa para o avanço da história em momentos do filme. O que ficou fora da narrativa apresentada?
Lucas Bambozzi: O filme começa em um trem com todas as logos e imagens da companhia Vale do Rio Doce, então existe uma alusão direta da marca da empresa ao ambiente retratado. Mas não há como depender de autorização para o registro dessa paisagem devastada. O registro das imagens de crateras foi feito num modo guerrilha. As crateras não têm uma relação diegética na linguagem cinematográfica de ‘Lavra’, ou seja, não é a personagem Camila que está diante das crateras. Elas aparecem no filme como uma imposição aos olhos do espectador. É uma das camadas narrativas autônomas – as imagens têm uma duração, permanecem ali, de forma direta, implacável. O registro das crateras foi feito a partir de pontos de comunidades que dão visão para captar as imagens. A autorização não seria dada e sequer nos submetemos a alguma autorização, porque o roteiro e o projeto não seriam aprovados por um departamento de relações públicas de qualquer mineradora. Mas a gente não cometeu nenhum delito, porque fomos em pontos, que não são propriedade das mineradoras, de onde se vê as crateras. As empresas disfarçam as rodovias, plantam eucaliptos, telas esverdeadas, às vezes biombos ou painéis. No caminho de Belo Horizonte para Ouro Preto tem um desses painéis que impede a visão da mineradora por parte de quem está na rodovia. Na cena do filme em que Camila é interpelada por uma segurança da mineradora Anglo American, as personagens Elizete e Fernando estão contando onde moravam, onde tomavam banho de rio, onde brincavam e o que se vê na cena ali são as obras da barragem, ainda em construção. Eles apontam isso da rodovia e são questionados por estarem num espaço público apenas olhando a mineração. De fato isso é um problema e a ideia do filme é que se questione o modo como as concessões são feitas às mineradoras, como a legislação possibilita certos abusos.
Por exemplo, a região do Serro tem atividades sustentáveis de produção de queijo, o ecoturismo e toda uma vida e uma cultura que depende da água (Minas é a caixa d’água do Brasil dizem e ali é umas das bases desse reservatório, exatamente onde foi instalado um mineroduto para escoar a mineração que depende das águas da região). Como deixar acabar com tudo isso? Como deixar que um rio inteiro seja sequestrado por uma mineradora? Se comparar o trem com o mineroduto, historicamente o trem ao menos servia a outros propósitos – gente, alimentos, outras cargas. Quando os trens de carga foram criados para evasão de minério de ferro, a linha de Minas Gerais até o Espírito Santo servia também para outros fins. O mineroduto hoje serve apenas para uma única empresa e uma única finalidade. É uma negociação muito espúria quanto aos benefícios e malefícios que uma mineradora oferece.
Lenine Guevara: “Lavra” aparece como um chamado, uma reza e uma ode para tomada de parte de todos que se revoltaram com os maiores crimes ambientais do Brasil, sua impunidade e continuidade no mesmo modelo de negócios que está destruindo vidas, memórias e regiões inteiras. Ao final, o pedido é que todos nos coloquemos no lugar dos atingidos pelas barragens. A escolha de ter uma narradora “de fora” que se implica ao longo do trajeto até fazer parte do movimento dos atingidos por barragens fica explicita, pois apenas ao final do documentário, Camila Mota aparece com seu rosto, depois de muita caminhada de auto-implicação e compreensão da causa e de suas consequências. Esse filme é uma travessia para se colocar no lugar dos atingidos?
Lucas Bambozzi: A pergunta é um ótimo resumo e envolve uma intenção narrativa de convite ao espectador, para que este possa ir se envolvendo progressivamente com a causa e não seja colocado de cara diante de um panfleto.
Este é também um recurso cinematográfico que fizemos questão de seguir a duras penas – com toda dificuldade que tive para implementá-lo. Foi muito difícil fazer esse filme de maneira cronológica, pois a experiência da Camila reflete a experiência do espectador, progressiva e crescente. Por isso, a ideia de que a câmera é subjetiva no início, ou seja, a câmera são os olhos dela, nós vemos o que ela vê e gradativamente vamos vendo seu corpo, passamos por um recurso de over the shoulder (em cima do ombro) e depois por uma série de follow shots e a gente vai vendo o corpo dela entrando em cena, e, o seu corpo e sua imagem vão se fazendo, até que a gente vê quem é ela – ou o que ela se tornou no decorrer de sua jornada. Do ponto de vista de que, nesse momento, ela está pronta para o entendimento amplo da causa e da solidariedade com a luta.
“Esse é não é um filme que fala da morte, mas das necessidades de avanço. Não basta só se conscientizar, tem que partir para ação.”
A partir do dia 08/09 o filme estreia nos cinemas. As próximas sessões de Lavra que antecedem a estreia acontecem no Cine Santa Tereza no dia 23 de agosto, no Centro Cultural da UFMG no dia 30 de agosto (19h) ambos na capital mineira, e, na Cinemateca do Capitólio, em Porto Alegre, no dia 2 de setembro.