Por  Kaio Phelipe

Valder Bastos é o artista que dá vida a drag queen Tchaka, a Rainha das Festas, recentemente apontada como a Drag do Milênio pelo jornal Folha de S.Paulo.

Apresentadora da maior Parada do Orgulho LGBTQIAP+ do planeta, que acontece em São Paulo, Tchaka une arte, militância e business em seus 23 de carreira e cede muita energia e verdade a quem a acompanha.

Confira abaixo a conversa que tivemos sobre movimento LGBTQIAP+, sua passagem no Exército, onde foi o Primeiro Atirador da turma, e outras memórias da trajetória artística e pessoal.

Como foi sua experiência no Exército?

Tchaka – Por volta dos 17 anos, a gente já começa a ter uma grande preocupação, um desespero mesmo, quando os parentes, os primos, os amigos começam a falar “você precisa se alistar”, “você precisa servir ao Exército”. Aí você começa a fazer o quê? Você é bombardeado pelas notícias, pelas informações que têm e fica meio cabreiro. Quando chegou a minha vez, eu tinha cabelo grande, na altura do ombro, e eu cheguei lá com ele amarrado. Mandaram tirar a xuxinha e me colocaram em um paredão. Eu estou falando de Mogi das Cruzes, anos 90. Estava muito frio nesse dia, por volta de cinco ou seis horas da manhã. Um paredão de uns 20 moleques e todo mundo pelado. A gente entrava em um cubículo e todo mundo tirava a roupa. O que a gente faz? A gente fica de cabeça baixa e começa a ter muito calafrio, muita vergonha e se fazendo muitas perguntas. Ali começam todas as humilhações que você possa imaginar. O cabo entra, o soldado entra, outros militares entram e começam a fazer o tal do “paga dez”. Quando ele chegou até a mim, perguntou se eu queria servir e respondi “não, senhor” olhando para baixo. Ele mandou eu levantar o rosto. Levantei, mas não olhei para os olhos dele, fiquei olhando em direção ao colarinho. Ele pediu pra eu abrir a boca, eu abri. Era para ver se eu tinha todos os dentes. Ele disse que tinha visto na minha ficha que eu tinha pai e mãe, perguntou seu eu fazia pelo menos três refeições por dia, se eu tomava banho, se estudava, se trabalhava. Falei sim, sim, sim, sim. Daí ele disse que eu era um forte candidato. Nessa hora, titubeei, falei “é”. Aí ele mandou eu pagar dez. Pagar dez flexões não significa dez exatamente. É até ele cansar. Você está pelado, na frente de um monte de moleques e eles começam a tirar sarro se você é muito peludo, se você é gordo, se você é preto, se você é afeminado, se é PCD. As divisões eram feitas a partir disso. Quem ficava no Tiro de Guerra de Mogi das Cruzes eram as pessoas brancas, bonitas e com família, para ficar visualmente bem aceito pela sociedade o Exército Brasileiro. Quem era gordo, negro ia para Caçapava, no interior de São Paulo. Ele falava isso sistematicamente e eu acabei ganhando o tal ticket para entrar. Ele mandou eu ir para casa raspar o cabelo e voltar com cara de homem. Ali eu passei todo tipo de humilhação. Tive que usar algumas armas que eu tenho. A primeira, foi o humor. Para que eu não fosse massacrado, sabe? Para não sofrer homofobia todos os dias. Então eu optei pelo humor. A outra arma foi que eu era muito CDF. Comecei a estudar para que eu não sofresse tanto. Eu tinha as melhores notas, me juntava com os que podiam ser galgados a novos postos e eu saí do Tiro de Guerra como o Primeiro Atirador do Tiro de Guerra de Mogi das Cruzes. Lá, ainda tem a minha foto como Primeiro Atirador da turma. Essa foi a forma que encontrei para não sofrer tanto, mas ainda assim foi a pior experiência da minha vida. Eu tenho 53 anos e, sem dúvida, servir ao Exército me fez menos ser humano, menos criador de experiências comigo e com as outras pessoas, me fez sentir nojo do meu país, ter repulsa do que pregavam, me fez ser menos sensível, me fez me sentir desprezado, não me senti acolhido em nenhum momento pelo Exército Brasileiro.

Como foi o início da Tchaka?

Tchaka – Quando terminou meu tempo no Exército, que eu falei “toma, pátria amada, agora me deixa”, fui estudar Direito na faculdade. Passei cinco anos estudando, peguei o diploma, dei para minha mãe e saí voado do interior e fui para a capital São Paulo. Cheguei com 30 anos em SP, em 1999. Foi nesse mesmo período que a Tchaka começou também. Eu já tinha me formado, já tinha feito tudo aquilo que a família gosta, aquela delícia para eles, “é viado, mas é estudioso”, aí depois mudou “é viado, mas é artista”, “é viado, mas tem independência financeira”, “é viado, mas é legal”, “é viado, mas tem bom caráter”. Eles esperam que a gente não seja nada disso, sabe? Então aos 30 anos comecei a fazer a Tchaka e óbvio que não comecei profissionalmente. Comecei bem roots, bem terrivelmente. Mas comecei a me achar nas artes, a me organizar, a ter acolhimento, a encontrar afeto. Comecei a ganhar dinheiro e falei “acho que é por aqui”. Este ano, em 23 anos de carreira, estou completando 5 mil eventos realizados.

Como recebeu o título de Rainha das Festas?

Tchaka – Eu já trabalhava como drag há oito anos, era 2008, mais ou menos. Um jornalista, Maurício Coutinho, daqui de São Paulo, disse “Tchaka, eu vou fazer uma exposição de fotografias e vou chamar algumas celebridades, subcelebridades, uma gente conhecida, vou chamar todo mundo e quem quiser ir, vai e queria dar títulos para as pessoas, Rainha da Bateria, Rainha da Comunidade e eu queria te dar um”, eu falei assim “Maurício, mas eu só faço festas, eu reino nas festas”, brinquei. Ele só disse “ok, tudo bem, a gente se encontra lá”. Quem me enfaixou foi a Kaká di Polly, uma grande drag, conhecidíssima, icônica nas noites de SP. Aí em tudo que era lugar, eu falava “Tchaka, a Rainha das Festas”. Frisava isso sempre que podia. Uma vez, surgiu uma reportagem do UOL perguntando “como assim Rainha das Festas? Quem deu esse título?”. Ironicamente, comentei embaixo “Sabe o que é? Estava eu descendo a ladeira da Vinte e Cinco de Março e tinha uma loja de fantasias com um monte de faixas na promoção, eu perguntei qual estava mais barata e a moça me deu a de Rainha das Festas. Eu peguei, comprei e pronto, é minha”. Eu não entro muito na onda do ódio, da limitação cognitiva das pessoas. Sempre falei que queria usar esse título. Adoro tudo isso porque tudo é efêmero, tudo passa e, daqui a pouco, tudo vira história da carochinha. Já que a gente está por aqui, vamos brincar.

Foto: Flávio Cansanção

Como é apresentar a maior Parada do Orgulho LGBTQIAP+ do planeta?

Tchaka – Tem muita gente que fala que sou a cara da Parada. Na Associação da Parada do Orgulho LGBTQIAP+ de São Paulo, eles falam que sou a cara do evento, que não tem como me colocar em um carro atrás. Imagine que somos 4 milhões de pessoas na Avenida Paulista, 4 milhões de pessoas e a maioria não se conhece, pessoas que nunca se viram e são de tribos diferentes, do interior, de fora do país, de várias religiões, pobres e ricas e a gente precisa tornar essa pluralidade em uma coisa única, precisa transformar em um organismo vivo e compenetrado na mesma energia. Então a Tchaka usa de técnica e voz de comando, mas um comando doce e assertivo. Preciso explicar que lugar de lixo é no lixo e não é não, por exemplo. Imagine falar isso para 4 milhões de pessoas. Já quebrei aquela voz distante de apresentador, mas preciso ser muito convincente na voz. Eu sou mais uma daquelas 4 milhões de pessoas. Imagine se algo acontece ali, uma briga, de repente. Uma provocação errada de alguém ali pode virar uma briga generalizada de 3 mil pessoas. Dois sentimentos são fundamentais para apresentar a Parada, que são a responsabilidade e a alegria. Responsabilidade de saber o tema, o motivo de estar lá, entender a nossa luta, o que cada carro representa, o roteiro, quem está na frente, o que tudo isso simboliza e, claro, responsabilidade para provocar a sociedade. E a alegria para afastar a repressão, os julgamentos, a maldição, os comentários de “que porra é essa?”, “você não deveria existir”. Então essa alegria é deliciosamente preenchida quando eu olho e, só na minha frente, vejo 150 mil pessoas e eu consigo visualizar cada uma que está ali pulsando por um mundo melhor. Todo mundo diferente do outro e desejando a mesma coisa e que legal que seja assim.

Qual memória da carreira guarda com mais carinho?

Tchaka – Três momentos são muito importantes. O primeiro é quando fui coroada pela minha mãe, Dona Branca, e eu estava com meu marido, Carlito, junto. Minha mãe me coroou dentro do Circo Stankowich, com uma faixa também feita pelo Maurício Coutinho, de Rainha das Festas. Esse dia me marcou muito. A outra memória é quando apresentei, na Avenida Paulista, para 3 milhões de pessoas, o Réveillon onde a atração foi Elza Soares. Essa noite foi um divisor de águas. Quando a Elza terminou o show, ela desceu e entrou no carro. Eu ainda estava estarrecida. O produtor perguntou se eu queria dar um oi a ela. Quando a gente apresenta um show, nem sempre temos contato com o outro artista. Enquanto a gente apresenta, o outro artista pode estar se preparando. Eu aceitei dar um oi a ela, coloquei o rosto na janela e disse “Dona Elza, eu te amo demais”. Ela falou “entra aqui”, eu entrei, ela pegou a minha mão e perguntou se eu tinha gostado do show. Eu falei “Dona Elza, por favor, a senhora é perfeita”. Ela falou “então me dá uma bitoca”. Ela me deu uma bitoca! Na minha mente, eu só pensava em beijar de olho aberto, queria ver tudo. Imagine! Dona Elza Soares me beijando! O outro momento foi na Parada, em 2017. Nesse ano, eu tinha ficado cega, tirei a catarata, voltei a enxergar e casei com o Carlito. Fui apresentar a Parada, vi uma menina lá embaixo, que é cadeirante. Anos seguintes, esta mesma menina, que se chama Ivone de Oliveira, e ela tem um blog que se chama Gata de Rodas, ela pegou e foi até a Associação da Parada e disse “eu não sei o que é ser LGBT, mas a Tchaka me viu, me sentiu e eu quero somar e entender a causa”. Para resumir, hoje ela faz parte da Diretoria da Associação da Parada do Orgulho LGBTQIAP+ da Cidade de São Paulo. Então você entende a responsabilidade e a alegria? A gente virou amigas, fomos para a Rede Globo, contamos essa história para a Sandra Annenberg, que chorou horrores ouvindo. Eu e Ivone nos identificamos muito.