Por Juliana Gusman

Mestre Môa do Katendê (Salvador, 1954) tombou no combate contra a pobreza perpetrada por gente endinheirada, embranquecida, embrutecida e colonizada. Em 8 de outubro de 2018, dia do primeiro turno das eleições daquele ano, juntou-se a Marielle Franco, assassinada em março, no triste panteão dos mártires políticos do nosso país. Se, por um lado, essas figuras se tornaram poderosas sínteses catalisadoras de uma revolta coletiva, elas sempre correm o risco de morrer de novo e de novo, mais uma vez. E Môa e Marielle são maiores que as tragédias-irmãs que seguem infligindo violências. 

No dia 3 de agosto, chega aos cinemas o documentário Mestre Môa: Raiz Afro Mãe, que engrandece seu protagonista com a justeza de lhe devolver à vida. O filme, que teve passagens em eventos como o Festival de Cinema de Alter do Chão, o Panorama de Cinema, o Festival de Cinema Brasileiro em Paris e o In-Edit, é mais e menos que uma biografia do multi-artista: mais, porque a reconstituição da história de Môa se entrelaça com a história da cultura popular, da cultura baiana, do Candomblé, dos carnavais, dos afoxés, em geral, e do Badauê, especificamente; menos, porque não pretende encerrar, como almejam algumas empreitadas biográficas, as possibilidades de contação e cantação da trajetória do personagem. A imagem que se tem é inevitavelmente fugidia, lacunar e impermanente, como se Môa desafiasse qualquer tipo de narrativização demasiadamente explicativa, enclausurada. Na boca dos outros, ele é um “agitador cultural”, é “música”, é “black power”, é uma “árvore frondosa” ou, simplesmente, “um ponto de interrogação andando pela rua”. 

Com uma voz documental discreta, mas sempre audível, o diretor Gustavo McNair deixa transbordar, aqui e ali, seus próprios atravessamentos diante da revolução-Môa. Ele conversou com a Cine NINJA sobre os processos de construção e circulação dessa obra monumento, que restaura o melhor do nosso passado para que possamos imaginar, com mais alegria e liberdade, aquilo que está por vir. 

Como aconteceu sua aproximação com Mestre Môa?

Gustavo McNair: A gente conheceu o Môa no começo de 2018, porque ele estava começando a gravar o disco Raiz Afro Mãe, na Mandril, uma produtora aqui de São Paulo que abraçou o projeto de fazer as músicas dele com uma roupagem mais moderna, com a participação de novos artistas. Nesse processo, a gente se apaixonou por Môa, pelos caminhos de Brasil que ele abria. Decidimos, juntos, fazer esse documentário sobre a vida dele, sobre a obra dele. Tivemos várias conversas, e a última foi a entrevista de pré-produção que gravamos no fundo preto, que acabou sendo fundamental. Foi a última entrevista dele em vida. Depois disso, Môa voltou para Europa, onde ele passava a maior parte do tempo dando aulas e oficinas, e a gente foi desenvolvendo o projeto daqui, à distância. Em outubro, ele retorna ao Brasil para visitar a família e para votar em Salvador, quando é assassinado no primeiro turno das eleições. Foi uma loucura. Havíamos inscrito o projeto no edital do Ministério da Cultura e o resultado só saiu em dezembro, nas vésperas da posse do Bolsonaro. Ficamos 2019 inteiro para fazer acontecer esse contrato. Depois, entrou a pandemia, em 2020 e 2021. A gente só conseguiu rodar mesmo pra valer, em Salvador, no final de 2021. Então, nesse meio tempo, o projeto foi amadurecendo. Minha convivência com Môa foi diária e ainda é. 

Quais seriam as principais diferenças entre o projeto original do filme, que contava com a presença terrena de Môa, e aquilo que o documentário efetivamente se tornou, após o seu encantamento? Ainda, você trouxe um outro elemento que pode aprofundar essas diferenças: a pandemia. O longa estava sendo gestado e provavelmente seria lançado no Brasil bolsonarista, mas por causa da crise sanitária ele chega em um outro momento, de otimismo e renovação de esperanças. Então, como você enxerga as dissonâncias que existem não só em relação ao texto do filme, mas ao impacto que ele pode ter em um contexto de circulação que não foi o inicialmente planejado?  

Gustavo McNair: Eu acho que o documentário chega num momento importante, em que estamos fazendo as pazes com o Brasil. Encontrar a figura de mestres como Môa, que trazem outras narrativas em tempos de desencantamento com o mito da democracia racial e que quebram as narrativas da branquitude com força, conhecimento, repertório e riqueza são fundamentais para ajudar a gente a se reconectar mais rápido com o país, com mais amor, orgulho. 

O filme sempre foi sobre a história de Môa, mas também sobre o universo que orbitava em torno dele. A ideia sempre foi construir duas camadas narrativas: uma camada biográfica, e por baixo, a camada da ascensão das manifestações culturais de matriz africana. O Môa estava envolvido na revolução do Carnaval, com o Candomblé, com a criação do Badauê, uma coisa meio antropofágica. No documentário, a gente ia seguir o Môa, que nos levaria a lugares e a pessoas que nos contariam e cantariam suas histórias. Com a morte dele, e com o lugar em que ele foi sendo colocado, de símbolo político de resistência, tivemos mais certeza do que nunca que o filme tinha que continuar a falar sobre a vida. A gente tinha que devolver ele para esse lugar da celebração, da arte e da música, não só para respeitar quem já conhecia a história dele, mas para acolher quem não conhecia. O filme continuou com a missão de trazer o legado de Môa, com uma preocupação didática e emocional. Claro que os depoimentos são impactados pelo que aconteceu, mas o tempo transcorrido por causa da pandemia ajudou as pessoas a quererem falar do Môa em vida, não só da morte, que foi muito revoltante. A espera foi importante para que a raiva se assentasse. 

As circunstâncias trágicas da morte de Môa – que envolvem o avanço do bolsonarismo fascista no país a partir de 2018 – são, como é inevitável, abordadas pelo filme que, entretanto, não se detém nelas. O documentário não parece dar ao assassinato um peso maior do que a imensidão da existência de Môa que, como você sugeriu, está vivo na e pela obra. Você pode comentar sobre as escolhas que orientaram o tratamento narrativo dessa morte? Como se chegou em um equilíbrio entre a necessidade de denúncia – e há muito o que denunciar – e uma certa ética do cuidado capaz de impedir uma revitimização da imagem de Môa e a perpetuação da violência que ele sofreu?

Gustavo McNair: A morte é um momento da vida de Môa, mas ela não é o final. Nunca poderia ser. É verdade que a morte está presente no filme inteiro, de uma certa forma. As pessoas se referem ao Môa no passado, com saudades. Algumas estão emocionadas. Logo no começo, a gente fala [por meio de letterings] que aquela entrevista foi nosso último encontro com ele. Mas nunca exploramos isso.

Por mais que parte do público busque o filme porque ficou conhecendo Môa por causa da morte, a gente não quer chamá-la para o documentário, que é uma celebração da nossa cultura. Por isso foi difícil achar o tom. Existe até uma pressão comercial de explorar mais a morte, de começar com a morte, a gente ouviu muito isso. Rolou muita cobrança de como íamos tratar disso em relação ao governo Bolsonaro, de como íamos puxar esse lado político. Mas a gente sempre tentava voltar para o Môa, pensar no que ele queria e no que ele merecia. Queríamos honrar a memória dele. 

É curiosa essa cobrança de se começar a narrativa pela morte ou com a evocação dos ecos do bolsonarismo. Se pensarmos em filmes recentes e bastante distintos, como o ficcional Marte Um (Gabriel Martins, 2022) ou o documentário vencedor da última edição do festival É Tudo Verdade, Incompatível com a vida (Eliza Capai, 2023), a marcação temporal, ainda que discreta, de um tecido social devastado pela vitória do ex-anti-presidente parece se firmar com uma (justificável) recorrência no nosso cinema. Entretanto, sinto que há algo de revigorante na sua opção de não traçar as bases contextuais do seu filme tendo a sombra de Bolsonaro como ponto de partida. Há uma outra forma de alusão à dimensão política dos acontecimentos retratados na obra: há, por exemplo, uma cena inicial na qual a câmera, que percorre as ruas do bairro Engenho Velho de Brotas, se volta para dois cachorros que latem para a equipe de filmagem de uma janela; nela, estão colados vários adesivos do Partido dos Trabalhadores, que remetem ao período eleitoral e a tudo que veio com ele. Talvez essa seja uma estratégia de referenciação mais acolhedora para os espectadores e espectadoras, que estão cansados de tanta virulência. 

Gustavo McNair: Também tem uma questão que é: a arte, o filme, tem que ser atemporal. Então ele tem que tocar quem ainda está revoltado no calor do Bolsonaro, mas tem que continuar mobilizando as pessoas daqui a dez anos. A gente tem que trazer o futuro.

A mensagem do Môa sempre foi que a nossa ancestralidade está na projeção do futuro. Não teria como a gente explorar uma marcação de tempo tão Ocidental, como a morte como um fim. A cultura africana não fala sobre isso. Não existe fim. 

 Retomando sua empreitada duplamente biográfica – pessoal e coletiva – o documentário trabalha com uma farta variedade de matérias de expressão – fotografias, arquivos, documentos, vídeos, entrevistas, performances – e com alguns eixos temáticos complementares: a oralidade, o território (muito valorizado pelo trabalho de fotografia), a música, a memória, os corpos. Como foi o processo da montagem [assinada por Mcnair e Danilo Trombela], que se deu a partir de um material humano e audiovisual tão rico? 

Gustavo McNair: Foi difícil. Queríamos que as duas histórias, as duas camadas narrativas – da biografia de Môa e da reconstituição das manifestações culturais africanas – se desenvolvessem juntas, abrigando os espectadores que não as conhecem, de uma forma que fizesse sentido. Razão e emoção tinham que caminhar juntas o tempo inteiro.

Os arquivos foram uma das grandes surpresas do filme. Quando começamos com Môa em vida, a gente não tinha quase nada. Fizemos um trabalho de pesquisa muito forte, e o nosso produtor executivo, Felipe Machado, foi muito importante no papel de contatar as pessoas. Alguns materiais vieram de jornais, outros de televisão, mas a maioria veio de acervos pessoais. Tivemos apoio de fotógrafos que registraram Môa ao longo do tempo, como Pierre Verger, Arlete Soares e Lúcia Corrêa Lima, além da família e dos amigos. Todo mundo revirou caixinhas e álbuns para achar fotos do Môa e mandar pra gente. Cada imagem que a gente achava de um momento histórico era muito comemorado. Acabou que o filme ficou muito ilustrado, o que é legal. Valoriza a história que estamos contando. 

Existe algum elemento que, para você, se sobrepôs no corte final?

Gustavo McNair: Acho que é um documentário que fala sobre um apagamento dos artistas negros do Brasil, sobre desigualdade, racismo, sobre a ancestralidade como uma via para o futuro. Fala de identidade brasileira, principalmente, eu acho. Isso foi o que o Môa mais despertou na gente, naquele momento, e até hoje é sobre o que ele mais me ensinou. Ele faz ramificar vários caminhos para nossa reconexão com nossas raízes, com as nossas origens, que são africanas, frutos da diáspora. Tem gente que não enxerga e quer apagar isso. Mas a riqueza do Brasil está aí. Pra mim esse é o grande tema do filme. A possibilidade de reconexão com a identidade brasileira, uma identidade afro-brasileira, que se perde numa espiral racista de silenciamento. 

Você encara seu documentário como uma ferramenta de mobilização capaz de ensejar transformações tanto simbólicas, quanto materiais? Por exemplo, o filme está empenhado em ajudar na viabilização do Instituto vislumbrado para preservar o trabalho de Môa, mencionado ao final? Quais seriam os desejos políticos desse documentário na sua circulação, na sua apropriação por parte das audiências? 

Gustavo McNair: Eu acho que o Instituto era um desejo muito grande do Môa, ele estava concentrando todos os esforços dele nisso. O objetivo era atender os jovens da comunidade, do Engenho Velho de Brotas, principalmente. O maior desejo de Môa era re-africanizar a juventude, que ele achava que estava desconectada. Se o filme tiver lucro, pretendemos doar para a criação do Instituto, assim como o arquivo todo que a gente reuniu e organizou. 

Acho que o documentário almeja contribuir, humildemente, até onde nos cabe, com a preservação da mensagem de Môa. O filme não dá conta de falar sobre tudo que o Môa era. Precisaremos de muitos outros filmes, que acho que serão feitos. O universo do Môa é muito rico, muito amplo e merece ser conhecido pela maior parte das pessoas. 

Espero que o filme seja uma ferramenta de educação. Que a gente leve ele para as escolas, para centros culturais, promovendo debates. Esse é o nosso maior desejo: que o filme seja amplamente visto e discutido para que o Môa seja cada vez mais conhecido e para cada um pegar carona nos caminhos que ele aponta da forma que achar mais conveniente. Ele nos dá muitas possibilidades com sua múltipla atuação nas artes: como dançarino, percussionista, compositor, capoeirista. 

Môa tinha uma vida política, embora ele não fosse um ativista em si. Tudo que ele fez em vida foi muito político. Um homem preto periférico, vindo do Candomblé, de um bairro pobre de Salvador, ser resiliente e permanecer falando de cultura afro-brasileira, num país como o nosso, e em outros países também, é uma atitude muito política. Ele era um arte-educador. O esforço dele de promover união dá munição para a gente. Acho que cultura é isso. Cultura é munição de argumento. O Môa era muito rico em dar argumentos pra gente combater o fascismo e o eurocentrismo que existe no Brasil. 

Nossa relação com Môa é para sempre. Ele ainda tem muito a oferecer para a construção de um Brasil mais possível.  

Foto: Divulgação

Por fim, quais são suas expectativas em relação à distribuição do documentário no circuito exibidor comercial e em relação à ocupação das salas de cinema, que passaram por uma crise recente, com uma produção brasileira?

Gustavo McNair: Eu estou muito animado e ansioso para levar o Môa para as telas de cinema. Vai ser muito emocionante. Como eu disse, eu acho que o filme é forte para esse momento. Ele de alguma forma finaliza um ciclo que começou com a ascensão do Bolsonaro e a morte do Môa. Agora estamos com um novo governo, as coisas estão ficando mais claras. A gente lançou um filme que não está no papel de combate ao que está acontecendo, mas que cumpre um papel de prevenção, de refletir sobre o que aconteceu e olhar para o futuro.

Estou animado com a possibilidade de mais pessoas poderem assistir ao documentário, não só as pessoas que têm uma relação com o tema, ou que foram convidadas, ou que estão no circuito de festivais. É muito bom levá-lo para o cinema aberto. Acho que é um filme para ser visto várias vezes, talvez. Muitas pessoas já saíram de sessões cantando, chorando, rindo, pesquisando, querendo saber mais sobre os afoxés, sobre os artistas. 

Agora é o melhor momento. As pessoas começam a fazer artigos, análises, críticas. O filme passa a andar sozinho. Espero que ele mexa com outras pessoas como mexeu com a gente. Conhecer o Môa nesse lugar de um grande artista pode provocar uma boa ansiedade de Brasil.  

Assista ao trailer: