Foto: Unicef

Artigo de Fran Paula, publicado no site Ancestralidade 

Esse artigo poderia fazer referência ao passado colonial e escravista findado a 134 anos, mas não. O ano é 2022 e a fome atinge 65% dos lares da população negra do Brasil. Isso ainda é escravidão!

Os dados recentes divulgados no II Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da COVID-19 no Brasil produzido pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar – PENSSAN, explicitam a triste realidade da população negra ao não direito a alimento. São 33 milhões de brasileiros/as sem ter o que comer diariamente.

No artigo publicado em 2020 – Racismo e Sistemas Alimentares, descrevo como o racismo no Brasil tem distanciado a população negra do acesso à terra e alimento de qualidade.

Contudo, observamos que a população negra segue submetida a um conjunto de violações, entre eles o não direito à alimentação Adequada e Saudável. Esta imposição é aqui descrita como Racismo Alimentar, sendo uma das tantas facetas do racismo estrutural que é mantido no país.

Um contingente da população negra geograficamente ocupa e sobrevive em grandes cidades, e se encontram em alta insegurança alimentar e nutricional e consequentemente adoecimento.

A alta no preço dos alimentos nos últimos anos tem levado a mudanças de hábitos alimentares em famílias de baixa renda, com abandono de culturas alimentares e aumento elevado do consumo de ultra processados. E não é uma opção ou escolha.

É vivenciado no Brasil um desmonte de políticas públicas de erradicação a fome e da pobreza, entres elas as de incentivos à produção e o consumo de alimentos agroecológicos e de promoção a saúde.

Em 2020 durante a pandemia o principal discurso do governo brasileiro era de salvar a economia do país, enquanto se dava o não investimento em saúde pública, adoecimento e morte da população e aumento da fome. A exemplo da omissão e ações tardias para a vacinação da população contra a covid, e a demora no apoio emergencial a população de baixa renda.

Em 2021 as filas de doação de ossos tomaram as ruas de Cuiabá e dos noticiários do país, justamente por se formarem na capital de Mato Grosso, estado conhecido como celeiro de produção agrícola do agronegócio, escancarando a pobreza e um modelo econômico e agrícola que não produz comida.

Recentemente o governador de Mato Grosso chegou a dizer publicamente em entrevistas que os ossos eram de qualidade e a prática se trata da “cultura alimentar” da população Matogrossense. Fato como este expressam a naturalização da fome e um projeto necropolítico.

A Insegurança alimentar tem atingido também as comunidades negras rurais e quilombolas do país. Neste caso está associada na maioria das vezes ao não acesso à água, território e políticas públicas.

Percentualmente, a situação dos habitantes em área rural é mais grave, mas o contingente de famintos em área urbana, cerca de 27 milhões, é assustador e revela o fosso social existente nas cidades do Brasil (REDE PENSAN, 2022).

Josué de Castro, em 1946 já descrevia em sua obra Geografia da Fome – A fome não como um produto de causas ou fatores naturais, e sim, produto de fatores sociais, consequências de estruturas econômicas defeituosas – resultado do sistema capitalista, sendo mais acentuada nos países subdesenvolvido .A fome como um projeto político.

Sistema Capitalista para Florestan Fernandes (1989) que retroalimenta o racismo, as desigualdades sociais, mantendo um sistema de dominação da política das camadas populares e das classes trabalhadoras (FERNANDES, 2017).

Portanto, não se pode olhar para a fome isoladamente, é preciso ver o racismo e sobretudo entende-lo como parte de um projeto político capitalista que mantem propositalmente a população negra sem acesso a direitos.

E como já escrevia Carolina Maria de Jesus em seu diário em 1955, a fome é a escravatura atual. Não cabendo ações para sua erradicação que sejam pontuais ou universais, quando o problema atinge determinadamente a população negra permanentemente.

Democratizando o ato de comer bem!

É urgente uma política que promova reforma agrária para distribuição de terras no Brasil, com regularização e proteção ao territórios indígenas e quilombolas, grupos que são afetados pelo racismo ambiental e racismo fundiário, fomentado por um projeto agrícola de latifúndios e commodities, a base da exploração desenfreada dos bens naturais e trabalho escravo.

Mesmo tendo o povo negro responsabilidade histórica no trabalho agrícola do país, estes foram propositalmente privados do acesso à terra e seguem sendo expulsos de seus territórios, e assim impossibilitados de produzirem seu próprio alimento.

A morosidade nos processos de titularização e regularização dos territórios quilombolas, explicitam a permanente violação de direitos – racismo institucionalizado na política de estado brasileira.

Segundo a CONAQ – Coordenação Nacional das Comunidades Negras Rurais Quilombolas, as negligências de sucessivos governos têm acentuado as desigualdades no acesso aos direitos e propiciado o desmonte de muitas políticas públicas — caso do atual governo. Nos dados preliminares do IBGE existem 5.972 quilombos no Brasil, presentes em 1.674 municípios de 24 estados. Mas só 4% deles estão titulados (DEALDINA,2022).

Já nas áreas urbanas a população negra está privada de acesso à moradia e território, mas também de liberdade (considerando os índices de assassinatos de jovens negros e do encarceramento em massa).

A luta por cidades justas e democráticas, passa pela urgência da reordenação dos espaços geográficos, com garantia de políticas públicas para efetivação de direitos fundamentais a população negra.

Educação, saúde, trabalho justo e renda e alimentação saudável.

Comer bem é um privilégio de classe e raça no Brasil, infelizmente o acesso à alimentação saudável na maioria das vezes está condicionada ao poder econômico das famílias. É só observamos em que bairros das cidades estão localizado as feiras e restaurantes orgânicos no país. Há no Brasil uma segregação no consumo de alimentos.

Isso ocorre também pela falta de incentivos políticos aos sistemas alimentares agroecológicos e/ou orgânicos, enquanto o agronegócio recebe do governo créditos e isenções fiscais para produção de commodities agrícolas e uso de agrotóxicos.

O que mantém a produção e comercialização de alimentos centralizados em nichos de mercados.

É urgente repensarmos os arranjos produtivos de produção e comercialização dos alimentos no Brasil, e construirmos uma nova geografia alimentar, que possibilite alimento de qualidade na mesa de todos os brasileiros/as.

E que enfrente sobretudo os mecanismo políticos que mantém o racismo e as desigualdades sociais, que distanciam e limitam o acesso a alimento saudável a maioria da população.

Principalmente quando estamos diante de uma sociedade explorada, faminta e adoecida, reflexo de um projeto necropolítico intencional, e sobretudo impositivo sobre a população negra do país.

Mato Grosso, 02 de Agosto de 2022.

Referências Consultadas

DEALDINA, Selma Santos. Os quilombolas que o Brasil insiste em ignorar. Texto publicado no jornal O GLOBO em 26 de julho de 2022. Disponível em

FERNANDES, Bernardo Mançano; GONÇALVES. Carlos Walter Porto. Josué de Castro: vida e obra. 2ª edição, São Paulo: Expressão Popular, 2007.

FERNANDES, Florestan. Significado do Protesto Negro. 1º edição São Paulo. Expressão Popular co-edição Editora da Fundação Perseu Abramo, 2017.

JESUS, Carolina Maria. Quarto de Despejo. Diário de uma favelada. 10 º Ed. São Paulo: Ática, 2014. 200p.

PAULA, Fran. Racismo e Sistemas Alimentares. Agriculturas e Ancestralidades, maio de 2020. Disponível em: 

II Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da COVID-19 no Brasil [livro eletrônico]: II VIGISAN: relatório final/Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar – PENSSAN. — São Paulo, SP: Fundação Friedrich Ebert: Rede PENSSAN, 2022.