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Por João Marcos Albuquerque

É do conhecimento de todos que o governo Bolsonaro sucateou o audiovisual brasileiro. Porém, não custa lembrá-los: a tragédia anunciada – ou seria planejada? – da Cinemateca em São Paulo; a extinção do Ministério da Cultura, transformado em uma Secretaria subordinada ao Ministério do Turismo; a paralisia da ANCINE e, consequentemente, do Fundo Setorial do Audiovisual; a não publicação do decreto anual de Cota de Tela a partir de 2019; dentre muitos outros desserviços à cultura, à arte e ao cinema.

Um destaque importante da conjuntura nacional: antes mesmo de Bolsonaro chegar ao poder, não podemos esquecer do golpe que derrubou Dilma, alçando Temer a presidência. Um golpe que, por si só, já é um ataque violento, conservador e sucateador da democracia e do povo brasileiro.

Como o cinema brasileiro tem lidado com esse cenário devastado é o que me interessa aqui. Em especial, como os filmes nacionais de ficção científica vêm projetando nosso futuro a partir deste cenário. Afinal, uma das grandes características do gênero sci-fi é especular sobre o tempo futuro tendo como base as análises sobre o tempo presente. É daí que me veio a ideia para criar o conceito “Estética da Sucata”, uma estética particular do cinema brasileiro contemporâneo pós-golpe e em tempos de bolsonarismo. Para ilustrar o conceito, vou utilizar os filmes “Era uma Vez Brasília”, de Adirley Queiróz, e “Carro Rei”, de Renata Pinheiro.

Antes, vamos ajustar os ponteiros. Entendo por sucata qualquer resíduo cuja utilização é inviável para sua proposta inicial, porém é reciclável e passível de utilização em outros sistemas produtivos. Entendo por “sucatear” ou “sucateamento” o deixar arruinar-se (por falta de cuidados, de investimentos etc.), ou o promover deliberado do sucateamento de (algo).

Então vamos lá.

A Estética da Sucata se manifesta tanto na dimensão espacial quanto temporal dos filmes. Na dimensão espacial ela se manifesta na construção cênica e narrativa a partir do uso material da sucata, em especial no uso de alumínio, metal, ferro fundido, papelão, plásticos e eletrônicos descartados. Portanto, a sucata se faz presente, materialmente, na composição de quase todos os planos e enquadramentos. Ela preenche os cenários, os figurinos, a sonoridade, e é elemento chave na trama, um significante fundamental, condutor de mensagem. Na dimensão temporal, ela se desdobra a partir da ideia de sucateamento, ou seja, algo que se dá através de uma duração, de uma temporalidade própria, a temporalidade do sucateamento – o tempo do vazio, daquilo que não acontece, da inércia, repetição e frustração. Se faz perceptível na montagem das obras, no prolongamento exaustivo dos planos – em “Era uma vez Brasília” – e no arco dos personagens, levando da promessa a descrença, como em “Carro Rei”.

A sucata nestas produções, portanto, ocupa papel central. E cabe aos personagens da trama trabalhar a sucata, ressignificar a sucata, fazer o que for possível com a sucata, já que sucata é tudo que temos. Portanto, os personagens, em “Carro Rei”, transformam os carros que iam para o ferro-velho em algo útil ao reciclá-los, como é o caso do próprio personagem “Carro Rei”, construído a partir de sucatas. Todavia, após a reciclagem, nem tudo é o que parece ser. Trabalhar com sucata pode ser algo extremamente perigoso – ainda mais quando extrapolamos e imaginamos o uso da sucata e o sucateamento como projeto político para a construção de um país.

No filme “Era uma vez em Brasília”, de 2017, acompanhamos o protagonista WA4, um viajante intergaláctico cujas intenções de sua viagem à Brasília permanecem misteriosas. Sua espaçonave é toda construída a partir de sucata, assim como suas armas e vestimenta. Ao chegar em Brasília, o cenário é típico das distopias pós apocalípticas – uma Brasília que lembra os cenários de Mad Max, devastada e desértica, onde os poucos corpos erguidos perambulam entre escombros e lixo. Uma visão “futurista” que utiliza a sucata tanto como material de construção para veículos de viagens intergalácticas, como para representar cenograficamente a capital do Brasil. O choque do futurismo ao ser representado através da sucata é imenso, e se passa uma impressão de tosco, de rudimentar, obviamente que não é à toa, nem me parece involuntário. O diretor, acredito eu, pretende sugerir, através dos elementos cenográficos, que esse é o nosso destino, nosso projeto de país e de futuro, projeto esse que está, neste momento (e desde o golpe) sendo colocado em prática. O Brasil como o país da sucata e do sucateamento, seja do cinema, da cultura, da educação, do bem-estar social, da democracia. Aqui, uma das muitas analogias que me vem à cabeça é a da sucata como sobra. É com a sobra das orgias daqueles que nos governam que vamos nos vestir, nos transportar, nos alimentar. O povo só tem direito às sobras (vide a tragédia da fome evidenciada pelas famílias em filas à espera da doação de ossos para comer em Cuiabá).

Já em “Carro Rei”, lançado dia 29 de junho nos cinemas nacionais, seguimos a trajetória de “Uninho”, um rapaz com o dom de conversar com os carros. O filme se concentra numa oficina mecânica, cuja função principal é transformar carros velhos – destinados ao ferro-velho – em “super-carros” que conversam com seus passageiros. A transformação dos carros velhos em “super-carros” é feita a partir da reciclagem de sucatas, realizadas pelas mãos de um mecânico talentoso. Em “Carro Rei” tudo muda quando há a promulgação de um decreto oficial que ordena o descarte imediato de todos os carros que já ultrapassaram determinada idade. Não vou adentrar nos detalhes da história para não dar nenhum spoiler, já que você deveria ir ao cinema conferir esta fábula insana sobre má consciência, ressentimento e “ascensão” do fascismo no Brasil dos últimos anos. O que me interessa, neste texto, é apenas apresentar a estética da sucata – e Carro Rei é um baita exemplo ilustrativo.

Se no filme “Era uma vez em Brasília” quase nada acontece, numa proposta de inércia quase total, representando exatamente a impotência e o torpor da população brasileira diante do golpe – o filme foi feito em 2017 –, já em “Carro Rei”, o que acontece, a princípio como algo libertador e revolucionário, é rapidamente desmascarado, apresentando as complexidades de se pensar movimentos subversivos em um país marcado pela colonização e por clivagens abismais de classe. Em “Era uma vez em Brasília”, os afetos que prevalecem são os de inércia e impotência. Em “Carro Rei”, parafraseando Paulo Freire, temos o oprimido desejando se tornar o opressor – afetos de traição, ressentimento, frustração.

Uma das grandes capacidades do cinema é sua capacidade de criar um universo particular a determinado filme, com sua própria lógica de funcionamento. Filmes como os que se passam em outros planetas, com criaturas fantásticas, ou em uma Brasília devastada, ou com um menino que conversa com carros – as possibilidades para a ficção são infinitas. Contudo, não é sempre que conseguimos realizar a extrapolação do universo criado pelo filme para o universo no qual o filme é criado. Ao fazermos a transição da ficção para o real, estamos dando novos sentidos ao que nos foi apresentado. As metáforas, assim, florescem em significados, e em relevância.

Ambos os filmes, através do que chamei de estética da sucata, conseguem nos proporcionar esta extrapolação. Aqui reside, para mim, não só uma das maiores qualidades de ambos os filmes, mas do cinema enquanto tal.

João Marcos Albuquerque é crítico e curador de cinema, responsável pelo Filmes Cuti. Mestrando em filosofia pela UFRJ.