Em ‘Pobres Criaturas’, ‘Anatomia de uma Queda’ e ‘Vidas Passadas’, as relações afetivo-sexuais fogem do ideal romântico

Por Patricia Dantas*

Ao longo de seus quase 130 anos, o cinema vem propagando com maestria o ideal do amor romântico. Seja em filmes do gênero romance, comédias românticas, ou mesmo em grandes e premiadas produções épicas.

É o caso de filmes como ‘Titanic’ (1997) e ‘E o vento levou’ (1939). Heitor Capuzzo, autor do livro ‘Lágrimas de luz: o drama romântico no cinema (1999)’, compara os dois grandes vencedores do Oscar (11 e 10 estatuetas respectivamente) afirmando que a grande empatia despertada no público deve-se ao exitoso uso do ideal de amor romântico.

“Não se pode considerar Titanic como sendo apenas um filme catastrófico, da mesma forma que …E o Vento Levou não é somente uma encenação de cunho histórico sobre a guerra da secessão. Ambos dialogam, intertextualmente, com o drama romântico, numa estranha e impactante simbiose.” (CAPUZZO, H. Lágrimas de Luz – o drama romântico no cinema. Belo Horizonte, UFMG, 1999)

Mas será que Hollywood continua investindo em grandes histórias de amor?

Analisando os indicados ao Oscar deste ano, talvez apenas ‘Maestro’ ainda flerte com os ideais do amor romântico. Mesmo mencionando a bissexualidade de Leonard (Bradley Cooper), o filme coloca em primeiro plano sua história de amor com Felicia (Carey Mulligan), com direito a um primeiro encontro digno de almas gêmeas e um relacionamento marcado pela abdicação dos próprios desejos e grandes sacrifícios pela família.

‘Pobres Criaturas’, ‘Anatomia de uma Queda’ e ‘Vidas Passadas’ questionam esse ideal de diferentes maneiras.

Em ‘Pobres Criaturas’, de Yorgos Lanthimos, Bella Baxter (Emma Stone) é uma jovem que foi criada pelo cientista Godwin Baxter (Willem Dafoe) em um experimento. Ela tem o corpo de adulta, mas está conhecendo e experimentando a vida como um bebê que acaba de nascer.

Foto: Divulgação

Bella não passou a infância lendo contos de fadas ou assistindo a filmes da Disney. Não chegou na adolescência sonhando com os finais felizes das comédias românticas e nem foi educada para conquistar um bom casamento e ter filhos. Ainda assim, após pouco tempo experimentando o mundo controlado que o cientista God (Willem Dafoe) criou para ela, já é prometida em casamento para Max (Ramy Youssef), o assistente de God. Quando conhece o sedutor Ducan, aceita seu convite para viver uma aventura antes do casamento.

O jovem hedonista Ducan, tão defensor da liberdade e da livre experimentação, assim que percebe que a jovem o superou em seu próprio jogo, confronta seus sentimentos de carência, medo e solidão e passa a cobrar monogamia, fidelidade, submissão. Ao que Bella apenas responde “sua cara triste me faz descobrir sentimentos de raiva por você”.

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Bella não tem memórias de traumas de rejeição, não experimenta o sentimento de falta e não projeta no outro a figura de alguém que irá completá-la. Assim como também não está familiarizada com os conceitos de fidelidade. Será que se não fôssemos criados inseridos na sociedade, não teríamos a mesma concepção que temos de amor? 

Em ‘Anatomia de uma Queda’, de Justine Triet, Sandra (Sandra Hüller) se torna a principal suspeita da morte do marido Samuel (Samuel Theis). 

Ao longo do filme vamos conhecendo aos poucos os personagens e o relacionamento dos dois. Sandra era uma escritora bem sucedida alemã, que havia conhecido Samuel em Londres quando ele lecionava na universidade. Depois de anos casados, Samuel propõe que se mudem para sua cidade de infância, nos Alpes franceses.

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A dinâmica do casal é revelada por pequenas provas que aparecem no julgamento: Samuel dava aulas ao filho em casa, cozinhava e reclamava por não ter tempo de desenvolver seu próprio livro. Sandra continuava escrevendo avidamente, viajava para promover suas obras e dava entrevistas para jovens estudantes. 

A clara inversão de papéis, com o homem dedicado à família e a mulher com uma carreira bem sucedida, já é suficiente para que não só o júri presente no tribunal, como também nós espectadores, passemos a desconfiar desta mulher, mesmo que, de forma concreta, não tenha nenhuma prova que a incriminasse. 

Quando ela admite de maneira muito natural que se relacionava também com outras mulheres, mas era só sexo, vemos a plateia, tanto no tribunal quanto no cinema, se revirar na cadeira.

Foto: divulgação

Confrontamos imediatamente com nosso conceito de amor e concluímos que ela não ama o marido. Portanto, só pode ser culpada. Mas culpada de que? Se realmente não amasse mais o marido e não quisesse mais viver com ele, essa mulher tão independente e bem sucedida precisaria matá-lo?

Já em ‘Vidas Passadas’, a cineasta Celine Song confronta diretamente o ideal romântico. Nora (Greta Lee) é obrigada a se despedir de seu namoradinho de infância Hae Sung (Teo Yoo) quando sua família deixa a Coreia do Sul e se muda para o Canadá.

Foto: divulgação

Anos mais tarde, Nora e Hae Sung se reencontram pela internet e percebem que a conexão entre eles ainda é forte. Tendo crescido com o conceito de “In-Yun”, que dizia que os encontros que uma pessoa têm na vida já estavam destinados a acontecer por vidas passadas, é inevitável que o relacionamento dos dois seja envolto por essa aura.

Depois de perceberem que estão passando mais tempo sonhando um com o outro do que vivendo de fato a realidade presente, Nora decide que é melhor se afastarem. Um tempo depois ela conhece, se apaixona e se casa com o americano Arthur (John Magaro).

Foto: Divulgação

Quando finalmente Hae Sung decide ir visitá-la em Nova York, Nora precisa confrontar essas duas personalidades dentro de si: a menina sul-coreana que via em Hae Sung sua alma gêmea e a adulta americana que se apaixonou por Arthur e com ele construiu outras concepções de relacionamento. Destino e escolha são noções excludentes? Não poderia seu marido americano ser seu In-Yun com quem já se encontrou 8000 vezes em vidas passadas?

Seja expondo as formas de se relacionar como construções sociais em ‘Pobres Criaturas’; seja revelando nossos próprios preconceitos ao inverter os papéis desempenhados por homem e mulher no casamento, como em ‘Anatomia de uma Queda’; seja nos colocando na pele de Nora para escolher entre sua possível “alma gêmea” e o homem com quem construiu uma vida; essas 3 obras indicadas ao Oscar de Melhor Filme este ano nos fazem desconstruir o ideal do amor romântico.

*Texto produzido em cobertura colaborativa da Cine NINJA – Especial Oscar 2024