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Por Noelle Pedroso

“Pobres Criaturas” não é uma simples releitura de “Frankenstein”, o clássico livro de Mary Shelley, apesar da clara inspiração. Trata-se, na verdade, de uma adaptação do romance de mesmo nome, escrito por Alasdair Gray. Também não é um manifesto feminista sobre a liberdade da mulher ou um filme que ilustra o controle sobre nossos corpos. Muito menos é uma narrativa sobre uma mulher com deficiência intelectual sendo abusada do início ao fim.

O filme é um sci-fi intrigante. Logo na primeira cena, somos apresentados a uma mulher se lançando de uma ponte, deixando o espectador sem informações sobre sua identidade. Quando seu corpo é encontrado, o Dr. Godwin Baxter, interpretado incrivelmente por Willem Dafoe, o leva para seu porão, onde realiza o experimento mais audacioso de sua carreira como médico. É neste momento que o público descobre que Bella Baxter, nome dado à mulher morta, estava grávida. God, como é chamado por ela, decide então trocar o cérebro de Bella com o do bebê e ela renasce. Assim, uma trama se desenrola.

Ao longo do filme, Bella passa por uma jornada de autoconhecimento e crescimento, o que gera uma série de análises e debates. Surgem questionamentos sobre qual é a mensagem central do filme: seria uma manifestação feminista? Ou talvez uma reflexão sobre uma mulher com a mente de uma criança sendo explorada por homens? Contudo, o que parece emergir é que o filme é, de fato, uma crítica contundente ao capitalismo tardio na era vitoriana.

Em um determinado ponto da narrativa, Bella é confrontada com um mundo cruel e faminto. Após doar todo o dinheiro que possuía para ajudar os necessitados e, infelizmente, cair em um golpe, ela se vê obrigada a recorrer à prostituição para sobreviver. No entanto, é crucial ressaltar que todas as decisões de Bella são fruto de sua própria vontade, desafiando diretamente os homens que buscam controlá-la e dominá-la.

“Pobres Criaturas” é um filme que desafia o espectador, não apenas pela sua temática controversa ou pelas cenas de sexo que geraram polêmica, mas principalmente pelo surrealismo da narrativa, pela brutalidade dos diálogos e pela direção impecável de Yorgos Lanthimus. Destaca-se também a excepcional atuação de Emma Stone, que não apenas protagoniza o filme, mas também é parte integrante da produção. Stone, de origem norte-americana, domina com maestria o sotaque britânico e suas expressões corporais, especialmente nas primeiras cenas em que sua personagem ainda é uma criança, são tão convincentes que nos fazem acreditar que ela realmente está distante do pleno domínio de suas faculdades mentais.

Em determinados momentos, a lente do filme adota uma perspectiva de “olho de peixe”, o que reforça a crítica ao “male gaze”, um conceito que denota a representação das mulheres nas produções audiovisuais sob a ótica masculina. Essa escolha cinematográfica destaca ainda mais a desconstrução desse olhar hegemônico, convidando o espectador a questionar as normas e os padrões de representação de gênero na tela.

Barbie e a falta de indicação nas principais categorias

Foto: Reprodução/Warner Bros Pictures

O filme “Barbie”, sob a direção de Greta Gerwig, oferece uma fascinante abordagem em relação ao conceito de “male gaze”. O longa desafia esses padrões ao explorar a jornada de sua protagonista de uma maneira que desafia os estereótipos tradicionais de gênero.

Greta Gerwig, reconhecida por sua sensibilidade na representação feminina, apresenta uma Barbie que foge dos moldes convencionais da famosa boneca. Por meio de diálogos perspicazes, uma narrativa inteligente e uma direção singular, o filme subverte as expectativas do público, desafiando o “male gaze” ao oferecer uma visão feminina, autêntica e multifacetada.

Ao explorar as experiências e desafios enfrentados pela protagonista, “Barbie” convida os espectadores a refletir sobre as percepções convencionais de beleza, feminilidade e identidade de gênero e como isso influenciou gerações. Desta forma, o filme não apenas critica o “male gaze”, mas também o recontextualiza dentro de um espaço narrativo que valoriza a autenticidade e a diversidade das perspectivas femininas.

Em “Barbie”, o male gaze é abordado de maneira direta e evidente, em linha com o estilo do filme, que não tem receio de transmitir suas mensagens. No entanto, a genialidade de Greta Gerwig não se perde neste aspecto. A intenção de cativar os fãs da icônica boneca é claramente perceptível, até por questões comerciais, com o cenário meticulosamente perfeito de Barbieland e uma paleta de cores cuidadosamente selecionada para criar um ambiente encantador que atrai tanto adultos quanto crianças.

O filme não apenas revela o male gaze, mas também o desconstrói e o transforma em uma ferramenta para explorar questões mais amplas sobre a sociedade e a cultura contemporânea.

Dito tudo isso, surge a questão: por que Greta Gerwig não foi indicada na categoria de Melhor Direção e Margot Robbie não foi reconhecida como Melhor Atriz, enquanto Ryan Gosling foi indicado como Melhor Ator Coadjuvante? Talvez o machismo não seja a resposta mais coerente.

O filme recebeu oito indicações, incluindo Melhor Filme e Melhor Roteiro Adaptado, o reconhecimento já é significativo em si, refletindo o impacto que a obra teve no ano.

Além disso, é preciso considerar “Barbie” como uma crítica ao capitalismo tardio e a introdução de muitas meninas ao empoderamento feminino. Apesar de ser uma produção voltada para a venda da boneca, a genialidade reside no olhar criativo e inteligente de Greta Gerwig sobre a Mattel. O filme oferece uma crítica genuína e bem-humorada sobre homens dirigindo uma empresa cujo principal produto é voltado para o público feminino. Gerwig demonstra habilidade ao inserir verdade e emoção em um filme que, essencialmente, é um produto comercial.

Contudo, desempenhar o papel da Barbie pode ser desafiador e limitante. A marca é um dos principais símbolos da feminilidade no mundo ocidental, além de atingir majoritariamente crianças, resguardada por uma patente valiosa e subjugada empresários poderosos. Isso implica que a Barbie está inerentemente restringida em suas representações. Por outro lado, personagens como Ken oferecem uma margem maior para a expressão criativa e a originalidade, já que não recebem a mesma atenção. Essa é uma realidade comercial que afeta tanto Margot quanto Greta, uma vez que suas ações e diálogos estão sujeitos à aprovação dos empresários, restringindo as possibilidades de desenvolvimento do filme e dá um ponto de confiança a Ryan Gosling, que desenvolveu um personagem engraçado e carismático proporcionando momentos icônicos que ficarão na história da sétima arte, como a interpretação da música “I’m just Ken”.

“Barbie” é uma obra voltada para o entretenimento comercial, projetada para proporcionar ao público uma experiência previsível e cuidadosamente elaborada, visando oferecer momentos agradáveis e catárticos. O que trouxe grande satisfação ao público, especialmente aqueles que cresceram nos anos 90 e 2000, foi a capacidade de compreender muitas das piadas inteligentes presentes na narrativa. Por exemplo, a inclusão da música “Push” da banda Matchbox Twenty na trilha sonora, como a favorita do Ken, é uma referência perspicaz, considerando que a letra aborda um relacionamento abusivo por parte do próprio vocalista e foi polêmica em seu lançamento. Além disso, a fala icônica de America Ferrera sobre os desafios enfrentados pelas mulheres em uma sociedade machista, ganha ainda mais relevância considerando o papel da atriz como intérprete de Beth, a Feia, na versão americana da série. Entretanto, é importante questionar como premiar filmes que priorizam o lucro pode moldar o futuro da indústria cinematográfica e afetar a diversidade e a inovação na produção de cinema.

Embora “Barbie” tenha seus méritos como uma obra que extrai o melhor de uma marca comercial icônica, é uma experiência cinematográfica que segue a fórmula previsível para garantir o retorno do investimento dos espectadores. Isso contrasta com obras que oferecem liberdade artística e exploram nuances mais profundas dos personagens, como evidenciado nas performances das atrizes indicadas que têm mais espaço para desenvolver seus papéis em contextos menos restritos.

Greta Gerwig brilha em outras obras de sua carreira justamente porque consegue escapar dessas limitações, explorando temas e personagens com mais complexidade e profundidade. “Barbie” representa um desafio único devido à natureza da propriedade intelectual da marca, o que pode ter impactado as chances de Gerwig e Robbie serem reconhecidas nas categorias individuais. É fundamental reconhecer não apenas o valor comercial de “Barbie”, mas também considerar as restrições que o filme enfrenta em relação à criatividade e à liberdade artística.

Texto produzido em cobertura colaborativa da Cine NINJA – Especial Oscar 2024