Temporada do fogo deveria chamar “temporada de crimes”, como reforça levantamento divulgado pela Agro é Fogo

Sobrevoo na região da Amacro (Amazonas, Acre e Rondônia), realizado e 30 de agosto de 2022, em uma área com cerca de 8.000 hectares de desmatamento – a maior em 2022 – que está sendo incendiada há dias (Foto: Nilmar Lage/Greenpeace)

Entre os meses de julho e outubro, a dita “temporada do fogo”, todos os anos o Cerrado e a Amazônia são os mais devastados por incêndios. Ainda assim, a gravidade da situação continua a ser ignorada a ponto de ser naturalizado um período marcado por queimadas.

Mas por mais que o debate fique em evidência apenas durante esses meses – já que a fumaça e prejuízos de ordem econômica não passam despercebidos e, assim, ganham espaço nos veículos de comunicação – esse é um assunto que precisa ser alvo de atenção todos os dias do ano. Nesta semana, a Articulação Agro é Fogo e o Centro de Documentação Dom Tomás Balduino – CPT divulgaram alerta. A Agro é Fogo reúne movimentos, organizações e pastorais sociais que atuam há décadas na defesa da Amazônia, Cerrado e Pantanal e dos direitos de seus povos e comunidades.

Segundo o grupo de defesa ambiental, até 5 de setembro, Dia da Amazônia, os focos de incêndio no bioma já eram de quase 60 mil. Um aumento de mais de 40% comparado ao mesmo período no ano anterior, segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE). No Cerrado, os números também alcançaram índices alarmantes: mais de 30 mil focos.

Em relação à “temporada de fogo”, como é chamado o período de estiagem mais suscetível ao fogo, deveria ser chamada “temporada de crimes”, defende a coalizão. Pois é entre os meses de julho e outubro, “que 71% dos conflitos com uso criminoso do fogo ocorrem. E com o desmatamento e incêndios integrando o mesmo ciclo, andam junto aos conflitos por terra no país”. Há também grandes impactos sobre a saúde pública, com hospitalizações e mortes em decorrência dos incêndios.

Incêndios e conflitos por terra andam juntos

Conforme levantamento da Articulação Agro é Fogo e Centro de Documentação Dom Tomás Balduino – Comissão Pastoral da Terrra (CPT), a partir dos dados do Caderno de Conflitos no Campo 2021, temos um sério diagnostico: é no Cerrado, Amazônia e na região de transição do Cerrado que 72% dos conflitos por terra envolvendo o uso do fogo (incêndios florestais, queima de roçados, queima de casa, queima de casas de reza e queima de pertences), estão localizados. Isso significa 83% (31.355) das famílias afetadas por ocorrências envolvendo o uso criminoso do fogo no país e em regiões de conflitos agrários.

O infográfico ao final da matéria demonstra um panorama nada comemorativo do Dia da Amazônia e do Cerrado – celebrado no dia 11 de setembro – que continuam sendo territórios do avanço do agronegócio sobre a sociobiodiversidade mediante os incêndios.

Nas localidades dos dois grandes projetos de expansão do agronegócio, o MATOPIBA (Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia) e o AMACRO (Amazonas, Acre e Rondônia), regiões de transição do Cerrado, os conflitos por terra aumentaram nos dois últimos anos. Conforme dados do Cedoc – CPT, em 2020 se tinha concentrado 18% das famílias afetadas por conflitos por terra em todo o país, já em 2021, foram 21% (34.067 famílias).

Segundo a mais recente edição do Relatório Anual de Desmatamento no Brasil (RAD), do MapBiomas, 23,6% do desmatamento no Brasil, em 2021, também estão no Matopiba, onde se registrou um aumento de 14% da área desmatada em relação a 2020, foram quase 400 mil hectares desmatados. A região do Matopiba é onde está 73% do desmatamento no Cerrado. No Amacro a área desmatada foi mais de 203 mil hectares em 2021, um aumento de 28,8% em relação a 2020. Tais dados reiteram a sobreposição de crimes configurados pelo avanço da fronteira do agronegócio pela Amazônia e Cerrado, em especial no conhecido Arco do Desmatamento.

Agropecuária é o setor mais responsável pelo alto índice de incêndios

Segundo a compilação de dados do MapBiomas, o maior setor responsável pelo desmatamento entre 2019 e 2021 foi a agropecuária (97,8%).  E ainda, ao cruzar os dados com as áreas protegidas, autorizações e Cadastro Ambiental Rural (CARs), o MapBiomas achou irregularidades em 98,6% dos casos de desmatamento. A análise apontou que 77% da área total desmatada está em imóveis rurais cadastrados no CAR.

O MapBiomas também avaliou o que aconteceu com as áreas desmatadas na Amazônia: entre 1985 e 2021, 44,5 Mha de vegetação nativa – que incluem formações florestal, savânica e campestre, áreas úmidas e mangue – foram convertidas para agropecuária. Desde 2019, o desmatamento e os incêndios vêm crescendo, respectivamente, em mais de 75% e 218% nesse período em comparação com 2018, conforme matéria da Greenpeace Brasil.

E as consequências desse percurso de destruição dos territórios são incontroláveis, tanto na qualidade de vida a longo prazo, quanto na saúde a curto prazo. Atualmente, a mudança do uso do solo – o desmatamento – é responsável por 46% das emissões de gases do efeito estufa do Brasil, de acordo com o Sistema de Estimativas de Emissões de Gases de Efeito Estufa (SEEG), do Observatório do Clima.

Impacto sobre a saúde pública

E um levantamento global divulgado pela revista médica The Lancet mostrou o impacto dos incêndios florestais sobre a saúde pública. O Brasil está entre os seis países com maiores médias de óbitos anuais entre 2000 e 2016, com 1.610 mortes por ano relacionadas à poluição causada pelos incêndios florestais. Nesse período mais de 48 mil brasileiros por ano foram internados devido a problemas gerados por incêndios florestais, principalmente nas regiões Norte, Sul e Centro-Oeste.

A pesquisa analisa mais de 143 milhões de hospitalizações de 1.814 municípios cobrindo quase 80% da população brasileira entre 2000 e 2015. Os dados não contemplam situações graves registradas no país nos últimos anos, como o de 2019 na Amazônia e de 2020 no Pantanal, o que indica que os números podem ser ainda mais assustadores.

Quem tem medo do debate?

Em ano eleitoral, com vistas a possibilidade de mudança no cenário legislativo nacional e estadual, que atuam concretamente autorizando ou barrando projetos de lei que afetam os territórios, ainda nos deparamos com um debate sobre o “meio ambiente” feito de forma rasa e sendo tratado como algo secundário. Tanto nas pautas da mídia quanto nas propostas eleitorais, o desvio de tratar sobre o agronegócio e seus efeitos é feito de forma cautelosa e com estratégias para agradar a categoria.

O uso de falácias e promoção de desinformação como “o agronegócio e o meio ambiente andam juntos”, “agronegócio sustentável”, “o agro sustenta o país” ou “são os ribeirinhos que tacam fogo na Amazônia”, silencia vários crimes que refletem em qual futuro teremos ou não. Sobre isso e a continuidade de aprofundamento nessa discussão, em outubro deste ano a Articulação Agro é Fogo lançará sua terceira fase do DOSSIÊ AGRO É FOGO a partir da sistematização do quanto a pratica dos incêndios criminosos são atos políticos que interferem nos modos de vida não só dos povos e comunidades tradicionais, mas também das pessoas que vivem na cidade, afetando, então, a vida humana como um todo.

Como já denunciado pela Nota Técnica, apresentada pela Articulação Agro é Fogo em parceria com o Observatório Nacional de Justiça Socioambiental Luciano Mendes de Almeida (OLMA), durante Audiência Pública na câmara dos deputados, em Brasília, os desmatamentos e os incêndios na Amazônia, no Cerrado e no Pantanal é um negócio milionário.

“De acordo com investigação realizada pelo Ministério Público Federal (MPF), uma área de mil hectares incendiada vale um milhão de reais no mercado ilegal e é um crime que tem a participação de grupos criminosos e de ruralistas que têm como projeto a expansão do agronegócio em terras destinadas a Reforma agrária”, denuncia a Agro é Fogo.

A Nota Técnica, que também propõe ações para conter o processo de devastação dos territórios e dos saberes dos povos e comunidades tradicionais, ainda destaca o ciclo de violência intensificado nos últimos anos tanto pela omissão quanto aprovação do governo Bolsonaro que logo no começo do ano de 2022 realizou cortes no orçamento destinado ao Ministério do Meio Ambiente.

Foram cerca de 35,1 milhões de reais no valor previsto, a maior parte desse valor – aproximadamente 25,8 milhões – saiu dos cofres do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), sendo mais da metade referente às ações de prevenção e controle de incêndios florestais em áreas federais prioritárias, que tiveram uma redução de quase 17, 2 milhões.

O “dia do fogo” é cotidiano

O aterrorizante “Dia do Gogo”, crime que completou três anos em 10 de agosto, também ocorreu e vem ocorrendo nessa época de seca. O “dia do fogo” foi realizado por fazendeiros e grandes agropecuaristas na região do Pará que combinaram, para o mesmo período, uma manifestação criminosa em apoio às políticas de desmonte ambiental do Brasil, e incendiaram áreas de pasto e em processo de desmatamento. Dias depois o céu de São Paulo escureceu no meio do dia, os resquícios de fumaça e poluição dos incêndios também atingiram o sudeste do país.

O que pouco se discute é que em várias outras ações, como as de 2019, estão acontecendo em maiores proporções como o de 22 de agosto de 2022 que foram 3.358 focos de calor detectados pelo INPE, no dia 4 de setembro isso aumentou pra 3.393 focos de incêndio em um único dia na Amazônia. Números bem acima do que ficou conhecido como “dia do fogo”, em 10 de agosto de 2019, que teve 2.366 focos.

Atualmente, de acordo com investigação da Repórter Brasil, parte da área incendiada naquele ano de 2019 foi transformada em área de pastagem para o gado e plantação de soja, monocultura. Mas antes do “Dia do Fogo”, os conflitos já eram graves e as comunidades já sofriam retaliações de fazendeiros. No PDS Terra Nossa, em Novo Progresso – Pará, três trabalhadores rurais já foram assassinados por grileiros e a ameaça de morte é constante.

E nesse ano, a situação não foi diferente, como publicamos no dia 12 de agosto, o assentamento, que foi um dos locais violentados pelo “Dia do Fogo”, mais uma vez, teve sua área incendiada no mesmo local. Para chamar a atenção para o que estava acontecendo, a Articulação Agro é Fogo junto a outras organizações, publicou também uma Carta de Solidariedade ao PDS do qual o Jornal Nacional se baseou para expor depoimentos sobre ameaças aos assentados realizados tanto de fazendeiros quanto da autoridades locais, além das evidências de várias garrafas com gasolina abandonadas na mata e encontradas pelos bombeiros. E novamente, dias depois, cidades do Amazonas e Pará ficaram cobertas por nuvem de fumaça tóxica causada pelos incêndios por tais incêndios.

Importante lembrar que essa é uma terra por lei destinada a Reforma Agrária, no entanto, a morosidade do INCRA e do governo federal continuam colocando os povos e comunidades tradicionais na linha de fogo, literalmente.

A melhor forma de manter o Cerrado e a Amazônia de pé é mantendo os povos e comunidades tradicionais em seus territórios de direito. Como reforça o DOSSIÊ AGRO É FOGO por dados, pesquisas científicas e vivências, a conexão entre humanidade e natureza é um processo co-evolutivo de prática da reciprocidade para com a terra, para a manutenção de suas casas e saberes.

Agro é Fogo/Cedoc-CPT/Instituto Cerrados

Agro é Fogo/Cedoc-CPT/Instituto Cerrados

Agro é Fogo/Cedoc-CPT/Instituto Cerrados

Agro é Fogo/Cedoc-CPT/Instituto Cerrados

Agro é Fogo/Cedoc-CPT/Instituto Cerrados

 

(Com Agro é Fogo)