Ripper completa 50 anos de fotografia em defesa dos direitos humanos. Foto: Kita Pedroza

Por Helen Borborema, Articulação Nacional de Agroecologia

Com 68 anos de idade, João Roberto Ripper, uma das maiores referências em fotografia documental do país, segue firme na sua missão de registrar histórias e formar novos fotógrafos com olhares diferenciados. Neste ano, ele completa cinco décadas de fotografia e luta pelos direitos humanos. Apesar dos inúmeros prêmios ao longo da carreira, são suas experiências de trabalho ao lado das causas populares que revelam mais sobre sua trajetória.

Das comunidades tradicionais no interior e fronteiras do Brasil aos morros das favelas cariocas, Ripper dispõe  seu ofício e sua profunda sensibilidade a serviço da construção do bem viver, seja revelando belezas ou denunciando opressões.

Imagens que ficaram eternizadas e rodaram o mundo, como o massacre de Eldorado dos Carájás, a luta dos Guaranis Kaiowás, flagrantes de trabalho escravo nas carvoarias, os modos de vida de apanhadores de flores sempre-viva na Serra do Espinhaço, entre incontáveis histórias, tiveram o clique, mas antes de tudo, o olhar e a alma de Ripper.

Ele sempre soube de que lado da história estava. Quando ainda trabalhava para meios comerciais  de comunicação, a sua atuação no movimento sindical fez diferença,  como na luta pelo direito aos créditos do fotógrafo, entre outras conquistas. Criou projetos importantes, como Imagens da Terra e Imagens Humanas, foi fundador da escola de Fotógrafos Populares da Maré Imagens do Povo e, por último, tem desenvolvido a pedagogia do Bem-querer, com workshops pelo país inteiro.

Além do afeto, que é visivelmente captado nas fotos, uma das principais bandeiras de Ripper é a luta pela dignidade humana. Em seu site, onde armazena parte de suas fotografias, ele alerta: “Essa fotografia só poderá ser usada para fins jornalísticos, informativos, educativos, artísticos e em campanhas humanitárias (…) e jamais poderá ser usada para finalidades que atentem contra a honra das pessoas fotografadas e suas comunidades”. O futuro de seu acervo já está decidido: ele quer que fique disponível publicamente na Biblioteca Nacional e, também, que cada organização social atuante no segmento mantenha o material referente para fortalecer a luta.  

Neste caminho, passou por  quatro malárias, septicemia, covid, cirurgias e imensos desafios. Mais recentemente, descobriu ser portador da doença de Parkinson e, agora, para continuar com o trabalho, tem buscado se reinventar para conviver com seus limites, sem deixar de seguir suas utopias.

Encontramos com Ripper em Porteirinha, no Norte de Minas, em uma de suas incursões pelas comunidades tradicionais. O sol escaldante do semiárido mineiro reluzia com toda intensidade, sem nem um trisco de nuvem. No chão de terra batida e com a paisagem de galhos secos, seus olhos brilhantes e os planos calculados revelavam a imensa energia e sede de João Roberto Ripper para o trabalho e pela vida.

Confira a entrevista completa: 

Sensibilidade e humanidade são principais características de Ripper. Foto: Ana Mendes

Como nasceu esse seu olhar para as causas sociais e a sensibilidade para enxergar a humanidade de forma mais profunda?

Eu venho de uma família de classe média baixa. Meu pai era funcionário da Companhia de Luz, veio do Ceará, e minha mãe era carioca. Eles eram pessoas muito amorosas e acho que peguei muito deles e da minha tia, que morava com a gente, essa questão do respeito e de querer ajudar o outro. Eles eram assim, pessoas fantásticas. Eu lembro do meu pai, no último dia de vida, no hospital, se despedindo da minha mãe com um beijinho na boca. Então, em muitos anos, todas as coisas deles foram muito amorosas, muito dedicadas ao outro, e acho que eu aprendi com eles. A família toda tinha esse contexto social sempre em pauta, e a gente foi crescendo com esse contexto. Me lembro que, certa vez, estávamos com bastante dificuldade, não tinha mais dinheiro e minha mãe andava na rua rezando e olhando, e por duas vezes ela achou dinheiro no chão. A gente estudou em escola pública e conseguiu bolsa em outras escolas. Então, eu vi sempre essa vida difícil, mas feliz, né? Eles passavam uma felicidade muito grande. Eu acho que veio um pouco daí. 

E eu, quando criança, achava que queria ser missionário, aí fui para o seminário. Lembro que o único que não foi a favor foi meu pai. Ele estava com razão, porque passados dois anos eu fui expulso de lá, quer dizer, convidado a ficar em casa. Eu acho que eu confundia muito essa coisa que hoje eu tenho, e foi muito bom, porque a minha vida toda foi voltada para a coisa humanitária. E eu fui conhecendo pessoas boas que dedicam a vida aos outros. 

Acho que, no fundo, todo movimento que existe, e toda pessoa fantástica que a gente encontra, me fazem aprender muito. No fundo eu acho que as pessoas que se dedicam a isso, que são imprescindíveis, são aquelas que não param nunca de lutar, mas são felizes com a sua luta. Acho que elas são movidas por amor, então eu só posso explicar isso com amor. Minha vida toda foi lotada de pessoas assim e isso me encantou, me encantou muito, mas acho que começou com meus pais.  

O que te move?

Existe um lado na vida, né? Eu acho que desde bem cedo eu entendi que meu lado tá muito do lado daquelas pessoas que sempre estão perdendo. Perdendo no sentido de estarem sempre oprimidas, sempre renegadas a um contexto onde você tem um poder muito maior, oprimindo. Um dia eu comecei a entender esse poder dentro da comunicação e como ele fazia mal para todo mundo. Aí, eu consegui começar a traçar um processo de como enfrentar isso… Com vários erros, mas hoje eu acho que tô bem feliz fazendo esse trabalho. No fundo, eu acho que as pessoas têm uma força muito grande, apesar de fazerem parte de um contexto onde elas são as oprimidas. E onde você tem um poder muito forte em todas as histórias. O Brasil é um exemplo muito forte disso, mas tem no mundo todo. Eu fico percebendo essas pessoas. Então, eu aprendi duas coisas: uma é concretamente saber onde é o meu lugar. A segunda é começar a aprender, aos poucos, a deixar de ter pena. Quando você tem pena dessas pessoas, que são tão lindas e tão fortes e que resistem ao limite que a gente pode achar que é impossível, é como se você tivesse uma certa arrogância. Eu aqui, do alto do meu saber, tenho pena de você que sofre tanto. E, na verdade, eles sabem dar a volta por cima. Eles podem sair de uma opressão e daí a alguns minutos ou algumas horas estarem festejando a vida. Isso eu aprendi inúmeras vezes. 

Uma vez eu ouvi uma escritora chamada Chimamanda Adichie dizendo que a pena talvez seja uma arrogância bem intencionada. Eu achei essa frase ótima e é muito o que eu penso. Quando a gente deixa de ter pena, a gente entende que é muito importante aprender a olhar o outro como igual, aprender a poder fotografar. Aprender a olhar nos olhos das pessoas, né? E isso eu acho que tenho feito e tentado fazer cada vez mais. E aí você pode estar com qualquer população, qualquer pessoa. E você começa a ver como as pessoas são bonitas, como elas fazem as coisas. E o tipo de beleza é muito mais surpreendente. Você não fica mais preso a uma beleza padrão, né? A uma beleza que está, de alguma forma, ligada a um esquema de poder, a uma manutenção de status quo, porque tem uma diferença entre as condições sociais de um grupo de pessoas, que eu acho que, na verdade, é a maioria, e as condições de quem tem poder.

Então, eu acho que ver essa beleza foi a coisa mais revolucionária. E eu consigo, eu acho incrível. Eu acho as pessoas lindas e isso é possível em qualquer esfera. Isso é possível, às vezes, até nas pessoas que estão à margem da lei. Elas podem ter beleza e sensualidade, ter uma coisa que eu acho que todo mundo deve ter, que é permitir que a emoção viva dentro da gente de uma forma forte. Aos poucos, eu também fui, na minha vida, deixando de ter esses julgamentos, que eu acho que vêm de aprendizados que a gente tem com a sociedade dentro da infância, né? E que fazem a gente criar os caminhos para andar dentro da conformidade, dos bons costumes, de uma maneira pudica de viver. E tudo isso foi se desconstruindo, mas se desconstruindo dentro de uma coisa bonita, que é ver que, independentemente do contexto onde uma pessoa fica e das situações que ela vive, ela tem sempre a oportunidade e ela sempre vai te maravilhar. E daí eu tracei um conceito para mim, de que o documentarista não pode nunca perder a capacidade de se indignar, mas também não pode perder a capacidade de se maravilhar com as coisas bonitas e boas. E que todas as pessoas podem ter coisas bonitas e boas. Isso me faz um bem muito grande, porque rompe conceitos. Você pode estar conversando com qualquer tipo de pessoa, mesmo aquelas que, de alguma maneira, dentro da sociedade, são quase execradas ou ficam em uma situação de minimizadas. Mas aquelas pessoas têm grandeza, beleza, sensualidade, resistência, dignidade. E a gente não deve achar que isso é, entre aspas, para as ditas “pessoas de bem”. E acho que foi isso que seguiu meu conceito, junto com uma coisa que é dizer chega de opressão, há muito tempo. Acho que desde pequeno eu já gritava: chega de opressão! 

Eu acabo vendo que, no fundo, principalmente nessas comunidades que eu fotografo, esses grupos de populações tradicionais, menos favorecidos financeiramente, têm uma deliciosa teimosia de ser feliz, e isso me encanta. E essa teimosia passa por descobertas de você conseguir ser alegre em inúmeros momentos, mesmo passando por tudo. Hoje, talvez as pessoas tenham conhecido um pouco mais disso com a pandemia. E, como o sofrimento passa a ser de todo mundo, as pessoas conseguem se reinventar toda hora e acho que os espaços para ser feliz são independentes de tudo, inclusive da opressão, porque ela não consegue parar os sonhos. Porque a utopia é uma realidade que te deixa vivo. Porque é muito difícil viver sem utopia e quando a utopia é demais, você tem muita fé nela, acho que você avança em conquistas reais. Talvez seja isso. 

No Massacre de Eldorado dos Carajás/ PA, em 1996, caixões dos trabalhadores sem terra assassinados, sendo transportados por caminhão. Foto: J.R. Ripper / Imagens Humanas

Foi aí que nasceu a fotografia do Bem Querer? 

Então, a fotografia do Bem Querer nasce um pouco depois da Escola de Fotógrafos Populares, quando a gente sai e a Escola continua na mão dos moradores das favelas. Eu me lembro que conversei muito com uma amiga, a fotógrafa Kita Pedroza, uma fotógrafa excelente e que por mais tempo coordenou a Escola do Projeto Imagens do Povo. E a ideia era a gente sair e deixar com eles. Inclusive, não era um projeto meu ou da coordenação, era um projeto para eles assumirem. E eu tinha duas coisas em que eu pensava muito e conversei muito com essa amiga. Uma era fazer uma série de workshops ou salas de aula, onde eu pudesse começar a jogar a discussão de fotógrafos e de não fotógrafos, a questão da comunicação como um direito humano fundamental e da fotografia como um desses elementos.

E eu achava que, apesar de ser uma pretensão muito grande, era importante desconstruir o jornalismo como ele era ensinado, pregado e executado. E aí algumas premissas vieram e eu queria poder mostrar como é que, no correr da história, a questão da história única esteve presente, nessa repetição, várias e várias vezes, de uma informação única sobre ausência de fazeres ou sobre a caracterização de violência nos espaços menos favorecidos financeiramente. Eu queria mostrar também que alguns conceitos jornalísticos tendiam a ver a comunicação não como uma coisa que aproxima as pessoas, mas como uma forma de competir. E aí, dentro da arte, peguei alguns conceitos, como o de que o jornalista tem que ser imparcial e trabalhei a ideia de que, na verdade, nenhum de nós é imparcial, porque a gente tem nosso posicionamento. A gente vive dentro de uma sociedade e de um mundo que têm conflitos e formas diferentes entre  quem detém o poder e quem luta para ter um processo mais justo para todo mundo. Não dá para dizer que a gente é imparcial. Eu defendia que você fosse sincero e honesto com o que você fazia. E que as pessoas pudessem ter caminhos para escolher, e não só o caminho majoritário de pressão do poder. Então, queria desconstruir esse discurso da imparcialidade.

Queria também desconstruir uma coisa que, talvez em momentos na minha atuação sindical, eu tinha até equivocadamente pensado que é do nível superior do jornalista. Eu queria mostrar que o direito de informar, investigar e divulgar, em qualquer meio, livre de censura, é uma coisa que os pensadores já tinham colocado no artigo 19º da Declaração Universal dos Direitos do Homem. Ali diz, claramente, que todas as pessoas têm direito de investigar aquilo que desejam saber e que, uma vez de posse dessas informações, podem divulgar para quaisquer meios, sem sofrer censura por isso.

E eu percebia que isso seria um jornalismo popular mesmo, tanto na cidade como no campo. E que, talvez, os maiores opressores disso aí fossem os grandes donos de veículos de comunicação, mas, infelizmente, alguns jornalistas também têm esse discurso de que, para informar melhor, precisa ter diploma. E, se você analisar as pessoas menos favorecidas, as grandes populações menos favorecidas, as populações tradicionais, os moradores de favelas e periferias, você vê que essas pessoas não têm voz, porque a proposta inicial de um jornalismo passava longe delas. Essas pessoas sempre são mostradas como potencialmente violentas e preguiçosas. Ou seja, eu comecei a entender que existia uma tática para isso acontecer. Primeiro, que a intenção era a manutenção do status quo. Quando você pega uma parcela enorme da sociedade e mostra que ela é violenta e preguiçosa, você afasta em vez de aproximar, então a comunicação estava aí de novo, afastando as pessoas. E vi que era fundamental quebrar a tática de não mostrar as coisas boas, os fazeres, as belezas de todas essas comunidades e populações.

Daí eu comecei a trabalhar muito uma coisa que já vinha dentro de mim, desde a minha infância, que é essa coisa de que você tem que ser um caminho de bem querer, justamente entre quem você fotografa, filma e entrevista, e a pessoa que vai receber a informação. Com isso, você estaria quebrando essa história única e conseguiria trazer coisas boas e mostrar coisas que não são vistas. A beleza é censurada na mídia, quando ela traz a luta de pessoas menos favorecidas, que são marginalizadas e criminalizadas nos seus movimentos. E eu tinha que trabalhar muito essa coisa, porque eu via o movimento, de um modo geral, o movimento sindical e do campo, com uma luta muito grande, muito séria, mas quase assumindo aquele estigma. Então, seus veículos alternativos de comunicação acabavam reproduzindo textos de briga, textos só de um contexto de luta, e eles não conseguiam olhar para si e para as coisas belas que faziam.

Talvez o entendimento mais fácil disso seja: onde fica o calcanhar de Aquiles da gente que luta tanto para ter igualdade, para ter uma condição de diferença, nesse status quo tão forte? Onde você tem cada vez mais pessoas pobres e também tem o aumento da concentração de renda nas mãos de poucas pessoas. Talvez seja dentro das casas, onde você vê lutadores tendo, dentro das casas, a representação pior desse poder excludente que é o machismo. Então, eu comecei a questionar muito isso. Por que não mostrar essas belezas? Por que não quebrar totalmente com essa imposição de poder de “eu sou mais que você, então eu digo isso”?

Acho que essa coisa de “eu sou mais do que você e eu posso mais do que você” é a filosofia do capitalismo e do poder. Então, eu comecei a trabalhar contra isso. A gente já tinha trabalhado nessa discussão, só que sem que ela estivesse organizada nessa forma de pensar dentro do projeto da favela. Eu via que eu vinha trabalhando isso, mas sem juntar, sem ter uma coerência nas documentações que eu fazia. Aí, preparando a oficina do Bem Querer e tentando jogar essa discussão para mais gente, vi que eu tinha que ordenar esses pensamentos, e comecei a buscar isso na história, a mostrar trabalhos de fotógrafos que eu adorava e a tentar entender os legados que eles deixavam.

Cartier Bresson, mesmo, passei a ver como um fotógrafo da liberdade, um fotógrafo do amor, que quebrava totalmente com conceitos pré-estabelecidos na relação das pessoas. E aquilo foi sendo muito forte para mim, né? Bresson foi um dos primeiros fotógrafos a fotografar a relação entre duas mulheres, né? E como é que ele conseguia fazer isso e ter, ao mesmo tempo, uma foto muito pra cima? Eu via muita esperança nos caminhos que apontavam em cada foto dele, como se fosse sair para alguma coisa.

Eu via a obstinação de Eugene Smith nas mudanças de status quo. E, assim, fui pegando um pouco de cada fotógrafo que me passava uma liberdade muito grande ao fotografar um contexto, uma liberdade criativa, e aí fui entendendo como aquilo era importante. Porque você pode ter a arte dentro de você, ter a emoção de coisas novas em qualquer momento do trabalho, mesmo quando presencia injustiças, sofrimentos e mortes. A arte vai poder, sempre, ser usada a serviço da estética, apurando as posturas e os sentimentos que eu acho que são extremamente dignificantes. E comecei a traçar o que algumas pessoas chamam de Pedagogia do Bem Querer na  Fotografia. Esses dias eu falei, caramba, que legal.  É isso. 

Casal de carvoeiros, em MG. Foto: J.R. Ripper/ Imagens Humanas

Nesses 50 anos de trabalho com fotografia e direitos humanos, quais histórias e experiências mais te marcaram?

Muitas histórias me marcaram inúmeras vezes. Tenho algumas na cabeça que foram bem fortes, para o bem ou para o mal. Uma que foi forte e bem trágica foi o Massacre de Carajás. Vi o que fizeram com a quantidade enorme de trabalhadores, cuja maioria é morta depois de baleada e tem os pedaços do corpo cortados. Foi algo muito forte. Pensar que é isso que o poder vinculado ao latifúndio faz é muito triste. Bom, uma coisa que tem acontecido constantemente e que tem me feito muito bem, é o trabalho com populações tradicionais, principalmente do Norte de Minas, que têm uma articulação muito grande através da Articulação Rosalino, que reúne essas populações todas, e apoios, com o CAA-NM [Centro de Agricultura Alternativa do Norte de Minas] e outros apoios muito fortes. Isso tem feito uma diferença e acho que hoje as  populações tradicionais estão na linha de frente do enfrentamento de forças opressoras, como as forças do latifúndio, do agronegócio, da mineração, do eucalipto, dessas monoculturas. E é com uma determinação e uma garra impressionantes que conseguem se aliar a uma Mística que envolve delicadeza e sensualidade. É a manutenção dos valores de uma forma tão rica, bonita e solidária. É realmente o mundo novo que essas populações defendem. Outro mundo, né, o mundo não capitalista, inviável de se conseguir. Agora, é um enfrentamento entre  Davi e Golias.

Bom, agora, documentando essas histórias, alguns momentos são muito especiais também… Quando estava documentando carvoarias,  eu encontrei dona Olga e seu João, no Mato Grosso do Sul, vivendo em situação de escravos, sem receber salário há oito anos. Apenas conseguindo acumular dívidas de ano para ano, eles estavam há mais de oito  anos sem ter dinheiro sequer para comprar roupas íntimas. Só conseguiram fazer isso quando um colega deles conseguiu fugir e foi para a área do mato com alguma reservinha, coisa bem difícil, e deixou uma partezinha pequena com eles, e eles entregam ao capataz para comprar roupas íntimas. Enfim, esse casal tem uma grandeza muito grande, porque dona Olga é uma mulher que criou os quatro filhos, e o pai dessas crianças foi embora. Ela criou os filhos até que eles completaram o primeiro e o segundo ciclos, e puderam tentar uma universidade. Uns 20 anos antes dessa foto, que eles estão juntinhos e ela está com o bracinho no ombro dele, de João, ela largou tudo para viver um grande amor com o João. Uma coisa muito difícil da gente ver qualquer pessoa fazer. Só que João era motoqueiro de motosserra e trabalhava cortando pinus e eucaliptus. Ele levava o que juntava para o seu local, onde botava nas formas, e  ela ajudava, fazia comida, mas acabou ficando cega, com a poeira, o calor e o carvão. Ela ficou quase totalmente cega. 

E essa mulher foi uma mulher guerreira, uma mulher de uma coragem incrível, uma mulher de sonhos, uma mulher sedutora… Quando eu estava fotografando, o João me disse que não sabia se tinha algum sonho ainda, e ela bateu no ombro dele e disse: “que isso, João, nós ainda vamos ter nossa casinha”. É isso que aprendi: essas pessoas incríveis têm a deliciosa mania de ser feliz. 

Outra cena que eu guardo muito forte é de um casal de velhos indígenas Guarani Nhandevas, que foram expulsos de suas terras e viviam desaldeados, na beira da estrada, numa casinha de madeira. Ela ficou doente e foi internada no hospital, com tuberculose. E ele não entendeu como ela podia sobreviver se alimentando só por um tubinho, que era o soro que ela recebia. Ele, então, retira ela do hospital, leva para casa. E quando eu estava andando de carro naquela região, com as pessoas coordenadoras da associação que reúne todas as etnias indígenas do Mato Grosso do Sul, a gente encontrou ele, e ele explicou o que estava acontecendo. A gente foi até a casinha dele. Fotografo ele de mão dada com ela. E, pelo caminho todo, ele só falava nela, louco com ela…  Quando ele saiu para conversar com as pessoas da associação, para buscar e organizar ajuda, ela ficou numa luz muito tênue, com uma lágrima parada no rosto. Eu levantei a máquina para fotografar, abri o diafragma e ela falou para mim: “moço, você que sabe das coisas, me diz o que posso fazer para ter forças para tomar um copo de leite por dia e não morrer de fome”. Eu fiquei extremamente chocado, parei de fotografar e respondi que ela devia se alimentar da paixão do marido dela. Eu sabia que ela estava com tuberculose final e que ia morrer. Eu não queria falar isso, mas eu também não queria mentir. Então, saiu isso, e eu disse que nunca vi um homem tão apaixonado por uma mulher, que ele adorava ela e que ela devia se alimentar dessa paixão. Só que saí de lá sem saber se tinha falado uma bobagem ou algo de bom. E só me aliviei quando, um pouco mais tarde, as moças voltaram para o carro e brincaram comigo: “Ripper, o que você disse para a velhinha, que ela  falou que hoje foi um dos dias mais felizes da vida dela?”. No dia seguinte ela morreu, eu fui até a igreja, onde as pessoas estavam assistindo a missa por ela. Indígena Guarani, quando morre, tem todos os seus pertences enterrados com ele numa rede. E ela estava ali e ele estava sozinho, no fundo da igreja, na parte interna.  Quando eu cheguei até ele, ele me abraçou com extrema fragilidade e balbuciou se ele tinha que ficar tão longe dela, que ele queria ficar perto dela… Então, eu indiquei para ele: “não, você pode ir andando por aqui, ali o senhor vai encontrar ela no caixão e o senhor pode ficar onde o senhor quiser”. E ele foi e eu fui pelo lado da igreja, para fotografar. Mas a cena estava distante, ele ficou em pé do caixão, e não sei se era o rosto dela e o Cristo, mas eu achei que era uma imagem muito forte  para uma história tão bonita, então fiquei esperando. Acho que quando você dá tempo ao tempo, ele se volta ao seu favor. Aí, de repente, ele se debruçou sobre ela, mais para o fim da missa, e fez um carinho nela… então, eu fiz a foto. Eu acho que a gente deve fotografar tudo… a dor e a alegria. Mas a gente pode ter, como condutor do nosso trabalho, a dignidade das pessoas. Esse foi talvez o momento que mais me marcou. 

 

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Uma das sementes importantes que você plantou foi a Escola de Fotógrafos Populares da Maré Imagens do Povo. Conta pra gente sobre esse projeto. 

O Imagens do Povo foi uma Escola e Agência de Fotógrafos Populares. Pra mim, teve uma coisa muito especial, porque foi o início de trabalhos na luta por uma “redemocratização da comunicação”, da forma de ver jornalismo e atuar lutando contra algumas coisas dentro do jornalismo, principalmente contra a história única e seus males. Era uma escola que pretendia passar, para os moradores de diversas favelas, a fotografia, mas com um conhecimento mais aprofundado e uma discussão muito grande do fazer fotográfico. Era esse compromisso com a informação e o direito de todas as pessoas de investigar o que desejam saber. E, uma vez  de posse dessa investigação e dessas informações, poder usá-las e divulgá-las por  todos os meios. A discussão é que o direito de investigar o que se quer saber não é um direito só do jornalista, mas um direito de todas as pessoas, como o direito de divulgar essas informações sem sofrer censura. E que os elementos da comunicação não devem nunca competir entre si, mas se somar, porque a comunicação,  quando acontece, aproxima as pessoas. Então, a gente não pode participar de uma comunicação que segregue e que não tenha informações múltiplas, porque todo mundo, na vida, não tem uma só informação, uma só história.  Então, a escola tinha quatro  horas de fotografia por dia, durante cinco dias da semana, e todos os dias do ano, exceto no primeiro mês e no último mês, quando se convocavam as pessoas e depois os alunos defendiam suas teses, seus trabalhos, seus estudos. Eles aprendiam desde a linguagem técnica fotográfica até a fotografia autoral, e desenvolviam um trabalho dentro da cidade do Rio de Janeiro, com um projeto onde a favela fizesse parte da cidade. E eram trabalhos lindos e de uma dedicação enorme. Eles aprendiam a editar coletivamente. Isso durou 10 anos e, depois, a gente passou o projeto para os próprios moradores locais. Foi um projeto muito bonito e forte, que deixou muitos frutos e desdobramentos. Até hoje os fotógrafos estão aí, são 60 fotógrafos vivendo de  fotografia e podendo reproduzir projetos e recriar coisas. 

Eles trabalharam nas suas regiões tentando quebrar esse estereótipo que, infelizmente, é uma representação dos poderes que usam como técnica não mostrar as belezas dos fazeres populares, das populações menos favorecidas financeiramente, como as populações dos moradores de favelas e periferias, dos indígenas, quilombolas e demais populações tradicionais desse Brasil imenso. Isso foi mostrado e passaram a notar as coisas boas que viam dentro das favelas. Foi lindo  ver o trabalho desses jovens, muitos trabalhos belíssimos. Eu fiquei muito satisfeito de participar dele. 

Mas muita gente fez parte dessa história… Ricardo Funari, Dante Gastaldoni, Kita Pedrozza, Joana Mazza, Érika Tambke, Rovena Rosa e depois a coordenação foi entregue aos próprios fotógrafos da comunidade.

Há alguns anos, em todos os trabalhos e incursões que você faz, sempre carrega um fotógrafo mais iniciante para participar de um processo de formação prática. Como é essa ideia?

Realmente, eu tenho cada vez mais investido em trazer fotógrafos que querem entender esse processo, essa pedagogia fotográfica ou jornalística do Bem Querer. Eu acho importante que muito mais gente possa fazer parte dessa luta, onde a gente tenta quebrar a história única e contar múltiplas histórias e, com isso, romper essa coisa do uso jornalístico na contribuição de uma manutenção ou até de uma exacerbação da diferença do status quo, de condições de vida entre as populações de nosso país. Na medida em que muitas pessoas se identificam com isso, eu acho que passa a ser uma prioridade minha poder ajudar na formação de mais pessoas. E quando a gente vai ficando mais velho, a gente vai entendendo que é muito importante que essa luta, que a gente acredita tanto, continue e que tenha muitas pessoas para executar, aprimorar, melhorar essa luta, essa fotografia, esse jornalismo. E eu acredito muito nisso. Por isso me dedico a sempre levar pessoas. E, para mim, é uma troca de aprendizados infinita. 

 

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Nos últimos anos você passou por experiências pessoais delicadas, inclusive de saúde, e chegou a ficar um tempo parado. Como foi esse período longe do trabalho e como foi a escolha de voltar para a estrada e para as comunidades?

Eu passei os últimos três anos de uma forma bem delicada. Meu problema de coluna piorou e tive que fazer uma artrodese [ cirurgia ], quando passei mal no Encontro de Fotógrafos. Eu recebi a indicação para fazer essa artrodese e não consegui fazer no Rio de Janeiro pelo SUS [Sistema Único de Saúde], por causa das dificuldades na cúpula do SUS. E recebi um conselho de um dos médicos do próprio SUS de que, se eu tivesse condições, fosse para o Ceará. E consegui, com o apoio de inúmeros amigos e fotógrafos, ir para lá, onde vivi e morei cerca de 7 meses, entrando na fila do SUS e esperando minha cirurgia. Meus amigos me apresentaram a um médico que ia me atender pelo SUS. Era um médico que tinha uma grande clínica particular, um especialista  em coluna, que foi quem me operou. Uma pessoa muito boa que me deixou fazer três meses de fisioterapia preparatória. Foi difícil, pelo lado financeiro, porque eu tive que vender carro e câmeras para enfrentar essa realidade de cirurgia. É uma cirurgia muito bem feita, mas, uma semana antes, nos exames finais, o médico descobriu que eu tenho Parkinson e me encaminhou para a neurologista, que confirmou [o diagnóstico]  e eu passei a ter que tratar do Parkinson também. O dia que operei era o dia que, oficialmente, começava a pandemia. A cirurgia foi ótima. É claro que foi uma cirurgia muito traumática porque você abre a coluna. Eu não ia conseguir mais trabalhar e ia ficar de cadeira de rodas. Não ia poder fazer minhas viagens. Graças a Deus,  deu muito certo. O médico me alertou que todo trabalho que eles fariam de abrir a coluna e me parafusar todo era só a metade, e a outra metade dependeria da fisioterapia diária que eu ia ter que fazer a vida toda. Eu estou fazendo fisioterapia, e acrescentando a ela a fisioterapia para o Parkinson. O Parkinson foi uma nova etapa, assumir que está com a doença e ver que, por mais puxada que seja, você pode conviver com ela, pode se tratar e não se deixar colocar como uma pessoa que não tem mais condições. Dá pra você fazer as coisas, se adaptar, tomar várias quedas, quedas literalmente, que arrebentam com o joelho ou com a perna… Porque a gente vive muitas vezes em áreas bem íngremes, às vezes difíceis de caminhar, principalmente para quem está com o Parkinson. Mas eu resolvi voltar a encarar, até porque eu preciso também. Independentemente de eu necessitar e amar loucamente, essas duas coisas pra mim se juntaram e vamos lá. 

E aí, quando eu comecei a fazer as primeiras viagens,a me acostumar, a tentar cair menos, eu descobri que tenho uma outra síndrome, que é a síndrome da explosão. Minha cabeça começava a receber choques, como se fossem curtos circuitos e raios e coisas acontecendo, plasticamente é até muito bonito. Mas é mais uma coisa que estou pesquisando. Vou pegar uns resultados dos exames e levar no médico para saber que obstrução é essa aí no meu sistema, no meu cérebro. Ver o que tem que fazer, se dá pra tratar, se tem que tirar, enfim. Vou encarar, vou ver e quero continuar.

Isso serviu para me alertar muito, né? Porque o tempo diminui pra gente, então tem que formar muitas pessoas para, quando o Homem me chamar para subir, eu ir feliz, porque estou vendo muita gente dar continuidade ao trabalho. É… Fora essas coisas, tudo antecedeu também por uma separação de uma pessoa linda e maravilhosa que eu gostava muito. Mas, enfim, a vida faz isso e a gente também tem que se retocar e retomar a vida e é isso que estou fazendo, literalmente. Reaprendendo a escrever, fazendo caligrafias, reaprendendo as caminhadas… O Parkinson te dá uma grande oportunidade de aprendizado também. 

Para conhecer mais sobre o trabalho de João Roberto Ripper, acesse o site https://imagenshumanas.photoshelter.com/index