
Naufrágio em Barcarena: tragédia no Pará envolvendo exportação de animais vivos completa dez anos
Uma década depois do naufrágio do Haidar, a poluição e o risco da exportação de animais vivos persistem em Barcarena.
Em 6 de outubro de 2015, Barcarena, no Pará, foi palco de uma das maiores tragédias socioambientais da história do estado, quando o navio Haidar, carregado com quase 5 mil bois vivos e 700 toneladas de óleo, naufragou no Porto de Vila do Conde. A maior parte dos animais, que seriam exportados para o abate na Venezuela, morreu afogada. Cinco dias depois, a barreira de contenção rompeu-se, e tanto os corpos quanto o óleo do navio dispersaram-se pela areia da praia e pelo igarapé da comunidade. A decomposição das carcaças dos bois e o vazamento de óleo deixaram um rastro de contaminação que alcançou a cidade de Belém, cerca de 60 km rio abaixo.
A tragédia comprometeu a subsistência de milhares de famílias da região e afetou a saúde de centenas de pessoas no decorrer dos anos, além de gerar enorme prejuízo para os cofres públicos. Dez anos depois, a carcaça do navio Haidar permanece naufragada no berço de atracação 302 do porto, inviabilizando a utilização dessa estrutura. De acordo com o Portal da Transparência, apenas com a contratação de empresa para reflutuação e remoção do navio — serviço que nunca chegou a ser concluído — o Governo Federal já gastou pelo menos R$12 milhões dos mais de R$44 milhões licitados. Ao todo, estima-se que o prejuízo causado pelo naufrágio chegue a 200 milhões de reais.
“Além de uma atividade problemática do ponto de vista do bem-estar animal, o transporte de animais vivos por via marítima traz elevados riscos ambientais, sanitários, sociais e econômicos, como infelizmente vimos em Barcarena. Há dezenas de casos de acidentes e de contaminação mundo afora, e as chances de uma nova tragédia em Barcarena aumentaram, já que o Brasil se tornou o maior exportador de bovinos vivos do mundo”, afirma Paula Cardoso, responsável pelo Departamento Jurídico da Mercy For Animals, organização global dedicada à defesa dos animais explorados para consumo.
“Um rato ou um cachorro na água já a contaminam, então imagina 5.000 bois mortos. Aqui os peixes diminuem a cada ano e espécies inteiras sumiram. Dizem que metais pesados estão no fundo do rio, e tenho amigos que alertam para não tomarmos mais banho ali. Mas onde mais vamos tomar banho? Quanto tempo ainda vamos viver assim?”, questiona o pescador morador de Barcarena, Raimundo Araci de Almeida.
“A tragédia foi devastadora para a praia e os igarapés, que foram tomados pelas carcaças e por um mau cheiro insuportável — não conseguíamos sequer comer ali. As crianças e idosos foram retirados do local por sua maior vulnerabilidade, e as máquinas pesadas utilizadas para remover as carcaças deterioraram a praia. Nesses dez anos, o turismo despencou: antes eram até 20 ônibus de turistas por fim de semana, hoje são no máximo três, e os barraqueiros perderam seu meio de subsistência. Temos medo de um novo evento, pois o navio ainda está no porto e há risco de poluição pelo óleo e pelos resíduos que permanecem no fundo”, conta Henrique Nery Carvalho, presidente da Associação dos Barraqueiros da Praia de Vila do Conde.
Risco socioambiental e sofrimento animal

O naufrágio do Haidar expôs as condições precárias dos navios usados para transportar animais vivos. A Marinha do Brasil relatou que a frota de navios que parte do Porto de Vila do Conde é constituída de embarcações antigas, classificadas por entidades não confiáveis, com baixo padrão de manutenção e operadas por tripulação com pouca tradição marinheira. Segundo o jornal britânico The Guardian, estima-se que a chance de um navio que transporta animais vivos naufragar e causar um acidente é duas vezes maior do que a de outros navios mercantes. Isso se deve ao fato de que 80% da frota mundial de transporte de animais vivos, constituída de cerca de 150 embarcações, não foi construída para essa finalidade, além de serem embarcações muito antigas, também chamadas de navios-sucata.
A poluição gerada pelos dejetos dos animais durante as operações de embarque é outra questão importante. Fezes e urina caem dos caminhões abarrotados de animais ao longo do caminho até o porto, impregnando com forte mau cheiro o ar dos municípios onde ocorrem os embarques. Essa poluição do ar tem consequências graves não apenas para a saúde pública, mas também para a economia local, pois perturba o comércio, o turismo e os afazeres diários das pessoas. Por esse motivo, Santos, em São Paulo, e Belém, no Pará, deixaram o circuito de exportação de animais vivos.
Mas os fatores socioambientais estão longe de ser o único problema. Nos navios transportadores de animais vivos, bois são amontoados em baias superlotadas e obrigados a viver em condições degradantes, em meio a suas próprias fezes e urina durante períodos que variam de duas a quatro semanas. O ambiente artificial do navio, a agitação do mar, as temperaturas elevadas e a superlotação causam estresse físico e psicológico nos animais, o que deprime o seu sistema imunológico e favorece o desenvolvimento de doenças. As condições precárias de higiene no interior dos navios e a ausência de assistência médico-veterinária adequada agravam a situação.
Impacto econômico negativo

Apesar de tudo, em vez de frear a atividade, o Brasil intensificou os embarques. Em 2024, o país ultrapassou a Austrália e se tornou o maior exportador de bovinos vivos do mundo: foram 960 mil animais enviados por via marítima para serem abatidos no exterior. Grande parte desses animais sai de Barcarena/PA que responde por dois terços das exportações nacionais.
O fim da exportação de animais vivos por mar é uma tendência global, que vem ganhando força em anos recentes. Índia, Nova Zelândia e Reino Unido já proibiram a atividade, assim como Alemanha e Luxemburgo. Em 2024, a Austrália, historicamente o principal fornecedor de animais vivos para o mercado internacional, anunciou que vai parar com as exportações de ovelhas vivas por mar, medida que deve ser estendida aos bovinos nos próximos anos.
Da perspectiva econômica, a atividade não faz sentido, pois transfere para o exterior as atividades das cadeias produtivas da carne e do couro que mais agregam valor, o que impacta negativamente a geração de renda e a captação de impostos no Brasil. O estudo “Análise dos Impactos Socioeconômicos da Proibição da Exportação de Bovinos Vivos no Brasil”, de autoria de pesquisadores da Universidade do Estado de Mato Grosso e da Universidade Federal do Rio de Janeiro, mostra que a transição para a exportação de carne processada geraria valor agregado adicional de até R$1,9 bilhão para o Brasil, com expansão do emprego formal entre até 7.200 postos de trabalho e crescimento da arrecadação tributária em até R$610 milhões.
Barcarena dez anos depois
Naufragado há uma década, o navio Haidar permanece submerso, impedindo a utilização de parte do terminal de cargas do Porto de Vila do Conde, o que prejudica o intercâmbio comercial do Pará com o mundo. A pesca e o turismo seguem prejudicados.
“Barcarena foi escolhida como pólo industrial sem que o próprio município participasse da decisão. O porto de Vila do Conde é estratégico — e vai se tornar ainda mais importante. Neste momento, estamos propondo que o município regulamente o trânsito de animais vivos, para reduzir impactos como mau cheiro e riscos sanitários”, afirma Márcio Maués, Titular da 1ª Promotoria de Justiça do Meio Ambiente, da Infância e Juventude de Barcarena.
O promotor indica que a proibição total da exportação de animais vivos é a melhor solução, mas apresentou outras propostas que visam aumentar o controle sobre a atividade, como a exigência de licenciamento ambiental para que aconteça e sua inclusão no Termo de Ajuste de Conduta (TAC) da Carne Legal — vinculando a exportação à obrigatoriedade da comprovação da origem lícita dos animais.
Outros problemas da exportação de animais vivos
Além da questão do extremo sofrimento animal, um relatório investigativo da Repórter Brasil com a Mercy For Animals revelou que o Brasil exporta boi vivo proveniente de fazendas envolvidas em outras graves irregularidades, como trabalho análogo ao escravo e desmatamento ilegal.
O estado do Pará, principal exportador de boi vivo, representa um risco ambiental elevado. Isso porque, desde 2008, o estado lidera o ranking de desmatamento da Amazônia.
Luta pelo fim da exportação de animais vivos no Brasil
Uma pesquisa da Ipsos encomendada pela Mercy For Animals indica que 84% das pessoas entrevistadas acreditam que a exportação de animais vivos deveria ser proibida no país.
Em 2017, o Fórum Animal propôs uma ação judicial solicitando a proibição da exportação de animais vivos via marítima no Brasil. Em 25 de abril de 2023, a Justiça Federal acatou o pedido e decidiu pela proibição da exportação de animais vivos em todos os portos do país, uma decisão histórica e que gerou grande comoção na comunidade de defesa dos direitos dos animais.
No entanto, a decisão não teve efeitos imediatos nem é definitiva. A União Federal recorreu da sentença, e a atividade continua sendo permitida.
Atualmente, há cinco projetos de lei federal com o objetivo de proibir ou desestimular a exportação de animais vivos. A petição da campanha Exportação Vergonha , criada pela Mercy For Animals, já reúne quase 600 mil assinaturas, pedindo pela aprovação de um dos projetos de lei que põe fim à atividade em todo o território nacional.