“Não queremos esse modelo econômico altamente destrutivo e predatório”, afirma Sônia Guajajara
Confira entrevista com Sônia Guajajara neste 09 de agosto, Dia Internacional dos Povos Indígenas.
Neste dia 09 de agosto é comemorado o Dia Internacional dos Povos Indígenas, e todas as suas organizações no Brasil estarão mobilizadas para um grande ato nacional. O objetivo é continuar pressionando o governo federal e o Congresso, que têm discutido diversas leis, normativas e outras ferramentas jurídicas que vão na contra mão dos direitos indígenas. Conquistas históricas do movimento estão ameaçadas por flexibilizações propostas por parlamentares e membros do governo.
Para tratar desses assuntos, a Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) conversou com a militante histórica Sônia Guajajara, coordenadora executiva da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB). Formada em letras e enfermagem, ela é uma das principais lideranças do movimento no país. É a primeira indígena candidata à vice-presidência da República, nas últimas eleições, na chapa do PSOL, e representa suas organizações em diversos tribunais internacionais.
Na entrevista, Guajajara fala sobre os retrocessos em relação às pautas ambientais e dos povos tradicionais no Brasil nos últimos anos, os desmontes dos órgãos e políticas públicas que atendem o setor, e critica a falta de interlocução por parte do governo com os movimentos. A própria Funai, que tem como atribuição a proteção aos indígenas, segundo ela, rompeu qualquer canal institucional com as organizações. Na conversa também é abordado o aumento da visibilidade das mulheres e do movimento, o crescimento eleitoral dos indígenas e a ascensão em diversas profissões.
Qual a sua avaliação política e histórica sobre as últimas décadas em relação ao tratamento do Estado brasileiro aos indígenas?
Nos governos do [Partidos dos Trabalhadores] PT havia alguma participação na construção política, mesmo com todas as contradições no sentido do desenvolvimentismo, que era a linha do partido. Havia espaço de participação da sociedade civil com a gente ajudando na discussão. No governo Temer, isso tudo foi sendo minado e agora o [governo] do Bolsonaro é a própria contradição. Não tem espaço de participação social e, além disso, a agenda é totalmente na linha da destruição: grandes empreendimentos, mineração, garimpo, desmatamento etc. Não tem espaço para a agenda dos povos e comunidades tradicionais, indígenas, pequenos agricultores, porque o governo é o porta-voz legítimo de todas as multinacionais e o setor empresarial. É realmente um momento de muita tensão, porque tudo que foi construído no sentido de garantir proteção ambiental e iniciativas locais foi totalmente desmontado.
Além do governo, tem também toda uma movimentação no Congresso Nacional com Projetoa de Lei que ameaçam os direitos indígenas. Como está a mobilização de vocês?
Estamos enfrentando esse desmonte de todas as medidas legais, a desconstrução da própria Constituição Federal e de tudo que garante direito territorial e proteção ambiental. Vários projetos no Congresso vão totalmente na contra mão de tudo que se conquistou até hoje. Temos lutado para evitar que as medidas sejam aprovadas, porque o PL 490 inviabiliza a demarcação de terra indígena, abre a porteira para o garimpo e o agronegócio. O próprio PL 2323 é a premiação de invasores de terras públicas com a grilagem, e o PL 191 autoriza a mineração em terras indígenas. Estes são os da vez e estamos no encalço para evitar essa aprovação, porque são medidas totalmente danosas, não só para nós indígenas, mas para todo o meio ambiente.
No dia 09 de agosto realizaremos mobilizações no Dia Internacional dos Povos Indígenas, e no final de agosto teremos o julgamento no [Supremo Tribunal Federal] STF sobre o Marco Temporal. Vamos montar acampamento em Brasília de novo durante oito dias e, em setembro, haverá a marcha das mulheres, então temos uma programação intensa para os próximos meses. Todas no sentido de evitar as aprovações que tramitam no âmbito dos três poderes, e também todas as medidas que saem todo dia do Palácio do Planalto por meio de portarias, decretos e instruções normativas. Todas vêm no sentido de suprimir direitos que estão na Constituição Federal, e nós seguimos a todo vapor com a nossa luta coletiva e organizada em todo o país.
Há também a incidência na luta institucional por meio do sistema eleitoral, inclusive houve a sua candidatura à vice-presidência. Existe um balanço sobre isso?
A APIB iniciou essa discussão em 2017 para motivar a participação indígena na via eleitoral, lançamos a carta Por um parlamento cada vez mais indigena. No ano seguinte, organizamos 130 candidaturas em todo o país e compus a chapa presidencial. Nas últimas eleições municipais [em 2020], tivemos 236 indígenas eleitos, foram dez prefeitos e do total 48 mulheres. Estamos agora discutindo formas de aumentar esse número de candidaturas para as eleições de 2022, elencando algumas candidaturas prioritárias em alguns estados para ver se conseguimos fortalecer essa presença, principalmente no Congresso Nacional.
Houve um fortalecimento e aumento da visibilidade do movimento indígena nos últimos anos? Como vocês têm trabalhado a questão geracional, já que as grandes lideranças estão ficando idosas, como o próprio Cacique Raoni?
O movimento sempre existiu e esteve muito articulado em todas as lutas, inclusive foi ele que garantiu os artigos 231 e 232 na Constituição Federal. O que aumentou foi a visibilidade das lutas que a gente faz, acho que o acesso à internet facilitou mais nesse sentido. Então, tem maior alcance e as pessoas estão tomando mais conhecimento da luta indígena.
Recentemente houve um encontro nacional de mulheres indígenas e muitas lideranças têm se destacado, como isso tem sido discutido?
Já havia um processo de discussão e participação das mulheres e, em 2019, a gente realizou a 1ª Marcha das Mulheres Indígenas. No ano anterior, tivemos a eleição da Joênia Wapichana (REDE), que também é fruto dessa. Em setembro próximo,vamos realizar a 2ª Marcha e estamos ocupando vários espaços. A mulher indígena sempre esteve em luta e muito presente, só que agora tem mais visibilidade. Estamos rompendo para além da aldeia e assumindo vários espaços para fora, então estamos no Congresso, na Assembleia Legislativa em São Paulo e liderando organizações, como eu na coordenação da APIB. Também estamos assumindo coordenações estaduais, tudo fruto de um longo processo.
E a questão da formação acadêmica e várias profissões sendo conquistadas com competência por indígenas, há também uma estratégia neste sentido?
A partir da política de cotas no governo do PT muitos indígenas tiveram acesso às universidades, e depois com a bolsa permanência muitos conseguiram concluir seus cursos. Então, temos indígenas formados hoje nas várias áreas profissionais, como médicos, advogados, antropólogos etc. Temos escritores premiados. Então, hoje, muitos são graduados, pós-graduados, mestres, doutores e a tendência é que aumente cada vez mais. Estamos na luta pela bolsa permanência, que está totalmente ameaçada por esse governo.
Como você avalia as falas do Bolsonaro sobre a integração do índio na sociedade, levando em conta o que é falado também sobre aculturamento na sociedade?
Não existe aculturamento, e sim uma inserção de outros conhecimentos e culturas à cultura original. Falar de aculturamento é uma forma de enfraquecer a identidade indígena. O que o Bolsonaro quer é acabar com essa diversidade, com toda essa luta que fazemos pelo direito às especificidades. Quando ele fala em integracionismo, é exatamente essa tentativa de que todos sejam iguais. Na verdade, queremos sim uma igualdade, mas de condições, de participação, de reconhecimento à diferença. Temos nosso modo de vida diferente e isso precisa ser respeitado pelo Estado brasileiro.
Muitos pensadores e o movimento ambientalista sempre associam o modelo de vida indígena à preservação ambiental, qual a sua avaliação sobre o modelo de desenvolvimento e o processo histórico do país?
Para nós, o desenvolvimento é o que atende aos interesses do governo e dos empresários. Essa palavra não nos serve, muito menos a prática. Queremos o envolvimento entre as pessoas e com o meio ambiente, e não esse modelo econômico altamente destrutivo e predatório. Precisamos pensar num projeto em que as pessoas estejam bem, e não esse que só atende o lucro e o capitalismo. As iniciativas locais precisam ser valorizadas, a diversidade, o meio ambiente, tudo de acordo com as realidades dos territórios e das pessoas. Hoje priorizam o lucro e o dinheiro, mas as pessoas ficam todas para trás ou são expulsas dos seus lugares. Então, não discutimos desenvolvimento, mas sim um modelo de envolvimento.
Existem antropólogos consagrados, como o Darcy Ribeiro e os irmãos Villas-Boas, e muitos indigenistas vivos até hoje, inclusive alguns na própria Funai. Como é discutida essa relação com os antropólogos e a Funai?
Com a Funai não existe mais relação nenhuma. Com os antropólogos é muito complexo, porque depende muito de cada um e alguns deles têm, inclusive, pontos de vista diferentes dos do movimento. Não tem uma opinião única, cada pessoa tem uma relação diferente. A Funai sempre foi um órgão respeitado por ser o oficial indigenista, que protege os povos e promove direitos, mas isso acabou totalmente. Uns até trabalham no sentido inverso da sua missão institucional, estão totalmente na contra mão e atendem àqueles que apoiam o governo e o presidente, não os que fazem a luta pelo bem estar dos povos. Então a Funai, que um dia foi chamada de “mamãe”, acabou caindo na perversidade de perseguir os indígenas e nos criminalizar. Querem retirar tudo que conquistamos em relação aos direitos. Não está havendo interlocução de nenhum setor do governo com o movimento indígena, eles têm diálogos com pessoas avulsas que vão lá conquistar algum tipo de apoio pessoal.
A demarcação das terras sempre foi a pauta prioritária, mas está havendo um retrocesso geral em relação às políticas públicas para o setor?
Só a saúde que continua, que é a SESAI (Secretaria Especial de Saúde Indígena) com toda a sua estrutura, e mesmo assim eles tentaram acabar e municipalizar a saúde indígena. Conseguimos segurar com muita luta, então somente o subsistema de saúde continua e as outras todas foram paralisadas.
A comunicação do movimento também tem crescido muito, mas além das suas ferramentas próprias e as mídias parceiras, como é o tratamento dos meios de comunicação tradicionais sobre a pauta indígena?
Temos nossa equipe de comunicação nacional e nos estados, e utilizamos as redes sociais para dar visibilidade às nossas demandas. A partir delas, a imprensa aponta ou não o interesse nas nossas pautas para divulgar. Nos últimos dois anos temos até conseguido acessar um pouco mais a imprensa corporativa, antes era muito mais difícil, e aumentou a cobertura. Mas sempre foi mais fácil chegar na imprensa do Brasil por meio da mídia internacional, que dá mais voz e aqui também vai emplacando. Temos uma rede internacional atuante, uma equipe na APIB também, e pautamos na ONU, OEA, Tribunal de Haia, Conselho de Direitos Humanos de Genebra etc. Fizemos uma jornada na Europa visitando doze países de uma vez, diálogos com movimentos sociais e o parlamento europeu. Vamos atrás para ter esses espaços e fazer a incidência da pauta indígena.
Quais são as perspectivas, desafios e estratégias para as próximas eleições?
É sempre um desafio, porque indígena não tem prioridade dentro dos partidos e dificulta muito o apoio para as candidaturas. Estamos nos organizando e chamando as lideranças para as conversas, e vamos ver como cada um se articula a partir das suas realidades nos estados. É sempre um desafio, porque muitas vezes, por mais que a gente queira que as candidaturas saiam pelos partidos de esquerda, às vezes não tem viabilidade e parentes lançam suas candidaturas pelos partidos de direita. É um desafio ter esse alinhamento das nossas candidaturas.