Não há democracia sem combate à fome
Reunindo mais de 400 pesquisadores em Goiânia na última semana, a Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede PENSSAN) publicou uma densa carta sobre os caminhos e desafios para as políticas no setor.
Reunindo mais de 400 pesquisadores em Goiânia na última semana, a Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede PENSSAN) publicou uma densa carta sobre os caminhos e desafios para as políticas no setor. A declaração cita não somente como se consolidaram e perderam protagonismo as políticas de segurança alimentar, mas elas se enfraquecem a partir de medidas em outros setores, como na Cultura, Educação e Ciência e Tecnologia.
“O Brasil tornou-se referência de diálogo em torno dessa experiência no cenário internacional. Esse processo esteve profundamente associado ao contexto de redemocratização e, atualmente, se defronta com o retorno de governos com perfis autoritários e antidemocráticos que afeta diretamente o que foi construído no âmbito do combate à fome e da promoção da SSAN”, afirma a carta. “A atual crise política e econômica vivenciada no país, também relacionada com processos globais em curso, vem afetando inúmeras políticas públicas que foram construídas nos últimos anos e foram fundamentais para a redução da pobreza e a retirada do país da vergonhosa condição de integrar o Mapa da Fome da FAO”.
Leia abaixo, na íntegra, a carta do IV Encontro Nacional de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional
DECLARAÇÃO FINAL
IV Encontro Nacional de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional
Caminhos e desafios para uma ciência cidadã no âmbito da Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional
A Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede PENSSAN) realizou o seu IV Encontro Nacional de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (IV ENPSSAN), na Universidade Federal de Goiás, em Goiânia (GO), entre os dias 10 e 13 de setembro de 2019, reunindo em torno de 400 pesquisadoras(es), estudantes e profissionais oriundos de instituições acadêmicas e de pesquisa, extensionistas, representantes de movimentos e organizações sociais e órgãos governamentais de todo o país e do exterior. A importância do Encontro, como um momento de congregação de pessoas comprometidas com a reflexão sobre as ameaças e desafios colocados para a promoção da SSAN e como parte da construção de uma sociedade justa e democrática no Brasil e no mundo, se reforça no atual contexto de retrocessos em direitos e políticas públicas e de ameaças autoritárias sobre a liberdade de pensamento e manifestação, pontuando que, tal como comer, construir e difundir conhecimento são atos essencialmente políticos.
A Rede PENSSAN é integrada por pesquisadoras(es) com formação em diversos campos disciplinares atuando em todas as regiões do país na produção de conhecimento e na proposição de ações e políticas públicas. Os estudos e debates que promove prezam a pluralidade de abordagens e metodologias, reconhecem a complexidade das questões relacionadas com a SSAN e valorizam o livre pensar em face de qualquer cerceamento da liberdade de pensamento, de pesquisa e de posturas normativas impositivas. Além disso, valorizam especialmente a não dissociação entre as atividades de extensão, ensino e pesquisa, pautadas por metodologias ativas e participativas e a democratização do processo de construção e divulgação do conhecimento.
O Brasil foi um ator proeminente na luta contra a fome e contra as várias faces das desigualdades que são marcantes no contexto nacional nas últimas décadas. Foi também protagonista na construção de Políticas e Sistemas de Segurança Alimentar e Nutricional (SAN) e tornou-se referência de diálogo em torno dessa experiência no cenário internacional. Esse processo esteve profundamente associado ao contexto de redemocratização e, atualmente, se defronta com o retorno de governos com perfis autoritários e antidemocráticos que afeta diretamente o que foi construído no âmbito do combate à fome e da promoção da SSAN. A atual crise política e econômica vivenciada no país, também relacionada com processos globais em curso, vem afetando inúmeras políticas públicas que foram construídas nos últimos anos e foram fundamentais para a redução da pobreza e a retirada do país da vergonhosa condição de integrar o Mapa da Fome da FAO. Algumas dessas políticas foram retraídas ainda quando a SSAN figurava como prioridade do governo federal, observando-se na conjuntura atual não apenas uma retração, mas a desestruturação e extinção de políticas e respectivas instâncias de participação e controle social resultando em consequências adversas para a sociedade como um todo. A aprovação do teto de gastos, a reforma trabalhista e a reforma previdenciária sinalizam uma desestruturação da Constituição Cidadã de 1988 e de marcos fundamentais na conformação de um Estado de bem-estar social.
No curso desse processo, evidencia-se também a desestruturação da Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional que se expressa em medidas como: a extinção do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA); a extinção do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA) e da Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional (CAISAN), além de outros conselhos de controle e participação social; a agressiva retração orçamentária de políticas e programas com potencial impacto na SSAN, acompanhada de isenções fiscais expressivas na produção e comercialização de refrigerantes e também de agrotóxicos; o empenho em dissolver a distinção entre “agronegócio” e a categoria “agricultura familiar” construída no Brasil para diferenciar modelos de agricultura e concepções de relação com a natureza, tendo servido de base para políticas públicas diferenciadas que respeitam a diversidade cultural no apoio e financiamento de práticas de produção, abastecimento e consumo alimentar; a persistente concentração da terra; o fortalecimento de monoculturas voltadas para o mercado externo (especialmente soja) com concomitante retração da produção de alimentos para mercado interno (feijão); a liberação de agrotóxicos em proporções nunca antes registradas no país, associada à flexibilização da metodologia que classifica esses produtos e a mudança da nomenclatura para “produtos fitossanitários”, um termo que ameniza o peso de toxicidade; os avanços agressivos no desmatamento da Amazônia e do Cerrado, quando comparados ao mesmo período em ano anterior, indicam como a flexibilização dos mecanismos de regulação estatal pode impactar os processos em curso.
Soma-se a isso, a disseminação de narrativas que questionam dados produzidos por órgãos de pesquisa que são históricos e reconhecidos no país e no cenário internacional (como o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), que questionam as mudanças climáticas, que justificam a extinção de reservas indígenas e acirram as polarizações sociais em torno de grupos populacionais específicos como indígenas, quilombolas e outros povos e comunidades tradicionais.
As medidas de austeridade fiscal em contextos de crise econômica, ética e política como a atualmente vivenciada no Brasil, em geral, só conseguem ser implementadas por meio de processos autoritários. Tal perspectiva aponta para os riscos que ameaçam a própria democracia (concebida para além do voto) e que agravam a situação alimentar e nutricional da população brasileira. Esse cenário se assemelha ao ocorrido em outros contextos nacionais onde essas medidas de austeridade foram implementadas também em situações de crise econômica e política. Os resultados já vêm sendo identificados e apontam para um acirramento da violação de direitos e um aprofundamento das desigualdades que, no caso brasileiro, são historicamente constitutivas da construção nacional.
Trata-se, portanto, de uma crise social e institucional, que se configura para além do atual governo eleito, mas que tem nele uma de suas mais perversas expressões. Nesse sentido, cabe considerar quais as perspectivas que se colocam não apenas no âmbito do poder executivo, mas também nos poderes legislativo e judiciário. De igual modo, cabe compreender a importância de se manter a porosidade das instituições públicas no que se refere à sua capacidade de absorver as demandas relacionadas com a garantia da SSAN e do Direito Humano à Alimentação Adequada e Saudável (DHAA) que implica nas obrigações do Estado de respeitar, promover, proteger e prover a alimentação adequada e saudável. A sinergia entre as três pandemias – obesidade, desnutrição e mudanças climáticas – evidenciada por estudos internacionais, coloca desafios maiores para as políticas públicas, considerando a relevância de serem identificadas ações e processos que afetem condicionantes estratégicos desse cenário.
A conjuntura atual também vem ameaçando a própria função social da universidade no desenvolvimento de atividades integradas de ensino, pesquisa e extensão. O corte de recursos, condicionado pela Emenda Constitucional 95, se expressa, dentre outros: (1) na impossibilidade das Instituições Federais de Ensino Superior (IFES) arcarem com os custos operacionais cotidianos, ocasionando a paralisação gradual das atividades; (2) no corte de bolsas de estudo com risco de redução de demanda e evasão de alunos; (3) no desrespeito às escolhas da comunidade acadêmica na consulta para escolha da reitoria; (4) na aceleração de aposentadorias diante do clima de insegurança no processo de trabalho, associada à falta de atratividade da carreira acadêmica, configurando um cenário preocupante para a renovação dos quadros docentes.
O projeto denominado de “Future-se” foi apresentado pelo atual governo federal como o caminho para fortalecer a autonomia administrativa, financeira e de gestão das IFES e fomentar a captação de recursos próprios por meio de parcerias com organizações sociais. A adesão das IFES ao Future- se é voluntária e o prazo de vigência não é definido. No entanto, as instituições que aderirem e desistirem da sua implementação sofrerão penalidades que ainda não foram estabelecidas. Trata- se, portanto, de uma adesão em condições desconhecidas e incertas.
Não há como considerar a adesão ou não ao Future-se sem problematizar que tipo de universidade a sociedade brasileira defende. Os parâmetros que configuram a proposta do Future-se são muito distintos daqueles que vêm sendo construídos nas últimas décadas sobre o que é uma universidade pública, laica, gratuita e democrática. A concepção de universidade que pauta o Future-se não favorece a ciência cidadã, ignora sua função social e o tripé ensino-pesquisa-extensão, porque é baseada em parâmetros mercantis, financeiros e organizacionais, incluindo a aplicação de recursos privados na perspectiva de gerar rentabilidade financeira em benefício de cotistas de fundos de investimento. Vale ressaltar que a proposta não menciona as atribuições das Fundações públicas de direito privado que estão presentes nas IFES.
O Future-se não foi amplamente discutido, nem mesmo nos órgãos de governo diretamente afetados, e esse fato, articulado aos processos em curso no país, indicam o quanto a universidade e o âmbito de produção do conhecimento em si têm sido um campo central de disputas. Adiciona- se a isto a compreensão do Future-se como parte do processo de desmonte do Estado, vale dizer, da desconstrução institucional das possibilidades de o Estado atuar na promoção da equidade e do desenvolvimento considerando a profunda desigualdade que marca a sociedade brasileira. Não estão, portanto, desvinculados dessa proposta do governo para as universidades públicas, ações como a extinção dos órgãos acima citados e de outros processos como os que estão ocorrendo no Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC), CAPES, IBAMA e FUNAI, dentre outros.
O ENPSSAN valorizou a compreensão sobre como o conhecimento em SSAN vem sendo construído e apontou os limites dos métodos científicos tradicionais na apreensão de realidades complexas como a SSAN, reafirmando a importância de seguirmos desenvolvendo uma concepção de ciência cidadã e de como construí-la. Essa perspectiva de ciência reforça a importância de se considerar os fenômenos e as prioridades de pesquisa e extensão na perspectiva de quem os vivencia e compreender como os sujeitos, em suas realidades concretas, constroem e analisam dados que subsidiam suas práticas cotidianas. Implica repensar as questões de pesquisa, os dados e indicadores utilizados, os processos de análise, as linguagens utilizadas e a argumentação construída na perspectiva de consolidação da cidadania. Assim, na perspectiva da Ciência como ato político, estão colocados desafios metodológicos que precisam ser enfrentados pelos campos científicos que operam com base em lógicas mais tradicionais centradas no pesquisador. A pluralidade metodológica é então um caminho importante para a construção de desenhos de investigação mais adequados para a compreensão dos processos complexos de SSAN. De igual modo, a valorização das atividades de ensino, extensão e o diálogo com outros tipos de conhecimento para além do científico, e não a mera “apropriação” desses saberes na pesquisa, colocam-se como desafios a serem enfrentados.
Esse debate se dá em um contexto de crescimento da violência no campo e de disputa de narrativas pelo alimento saudável e sustentável dentro do sistema agroalimentar que, entre outros, expressa como as grandes corporações estão se adaptando para atender a demanda de diferentes grupos de consumidores que buscam um consumo ético, um menor consumo de carne associado à preservação ambiental, mas que, no entanto, pode não ser oriundo da produção da agricultura familiar e agroecológica. Como em outros momentos, a indústria alimentar busca se adaptar às demandas dos consumidores e simultaneamente induzir práticas alimentares. Há que se evidenciar como esses processos reforçam as desigualdades existentes, uma vez que são essas corporações transnacionais que atuam em larga escala e concentram os recursos do sistema alimentar.
Em sociedades como a brasileira e como a maior parte dos países latino-americanos, marcadas por iniquidades constitutivas, é fundamental compreender como os diferentes tipos de desigualdades (de gênero, étnico raciais, de renda, de acesso à terra, à bens e serviços públicos) são simultaneamente gerados pelos sistemas alimentares e o configuram. Tais desigualdades são ratificadas e mesmo acentuadas em conjunturas políticas de crise agravadas com a adoção de falsas soluções informadas pela lógica da austeridade que afeta de forma desigual os diferentes segmentos da população.
Outro tema estratégico de pesquisa abordado no evento refere-se à análise das relações entre alimentação e cultura e aos desafios postos para a construção de políticas públicas que sejam adequadas aos distintos grupos e contextos sócio culturais, que respeitem a diversidade cultural e alimentar e a soberania dos povos. Nesse sentido, a valorização da compreensão dos sujeitos e dos atores envolvidos com a ação política, das concepções e interesses em disputa, bem como das múltiplas arenas públicas que vêm sendo construídas no país, para além dos espaços governamentais, é fundamental para a análise de processos políticos complexos como os que envolvem a SSAN. Em consonância, a análise dos caminhos para fortalecer atribuições estatais que são fundamentais para garantia da SSAN, como aquelas relacionadas com as estratégias regulatórias, movimenta a Rede PENSSAN.
As reflexões do evento deverão também subsidiar uma agenda política estratégica que está em curso no país, que inclui a realização de conferências estaduais e municipais de SSAN e a proposta de realização da Conferência Nacional Popular Autônoma e Democrática prevista para 2020. Esse processo evidencia a resistência positiva que existe no país em torno desse tema, bem como sua relevância para a agenda pública que vem sendo construída para além da agenda governamental em si.
Agradecemos a comissão organizadora local do IV ENPSSAN pelo trabalho comprometido e competente que viabilizou a realização do evento e finalizamos essa declaração com as palavras utilizadas na cerimônia de abertura do IV ENPSSAN que expressam a perspectiva da Rede PENSSAN e suas atribuições no contexto atual: não temos o direito de não lutar, não resistir e não vencer.