Não existe nada de inédito sobre Sociedade da Neve. Então o que torna o filme especial?
O filme “Sociedade da Neve”, da Netflix, não traz muitas inovações em sua produção ou narrativa, uma vez que grande parte do público já está familiarizada com a história do chamado “Milagre dos Andes”.
Por Isabella Vilela
O filme “Sociedade da Neve”, da Netflix, não traz muitas inovações em sua produção ou narrativa, uma vez que grande parte do público já está familiarizada com a história do chamado “Milagre dos Andes”. Muitos já ouviram falar desse evento ou até mesmo assistiram ao filme lançado em 1973.
Passados 51 anos desde o trágico acidente aéreo em outubro de 1972, no qual 16 dos passageiros foram resgatados após 72 dias, o filme reconta essa incrível história de sobrevivência. A aeronave transportava um total de 45 passageiros, entre eles jogadores de rugby, familiares e amigos. Enquanto aguardavam o resgate, enfrentaram a angustiante decisão de se alimentar dos corpos dos companheiros falecidos.
Mas o que torna essa produção tão especial não está no remake em si, nem nos relatos sobre a necessidade de recorrer ao canibalismo para sobreviver, e sim na capacidade de suportar a própria dor e a dor de um amigo.
O filme é narrado por Numa Turcatti, um estudante de direito de 24 anos na época, que decidiu se juntar aos amigos no voo 571 de Montevidéu, Uruguai. Embora não fizesse parte do time de rugby, Turcatti aceitou a proposta de viagem com a esperança de uma experiência divertida. No entanto, as circunstâncias se revelaram bem diferentes do esperado. Mesmo sem conhecer todos os membros da equipe no início, acabou por se familiarizar com todos eles durante os dois meses que passaram juntos nos Andes.
Em entrevista à Netflix Espanha, o sobrevivente Gustavo Zerbino diz ao intérprete de seu amigo, Enzo Vogrincic, que “as pessoas morrem quando nos esquecemos delas. Quando você transmite o que Numa transmitiu, você faz com que as pessoas vivam a partir disso”.
Numa não resistiu à doença que se alastrava por seu corpo e faleceu duas semanas antes do resgate, em 11 de dezembro de 1972, após 60 dias do acidente. Foi encontrado um bilhete com os dizeres “Não há amor maior do que dar a vida pelos amigos” em suas mãos, motivando seus colegas, Nando e Roberto, a sair pelos Andes em busca de ajuda.
Dirigido por Juan Antonio Bayona – conhecido por títulos como O Orfanato, O Impossível, Um Monstro Chama, Jurassic World: Reino Caído e O Senhor dos Anéis: Os Anéis de Poder, o filme estreou em dezembro em algumas salas de cinema ao redor do mundo e foi disponibilizado em plataforma de streaming a partir de 4 de janeiro. Baseado no livro do jornalista Pablo Verci, que entrevistou os sobreviventes, o filme oferece uma visão detalhada desse evento marcante. Hoje, 14 dos sobreviventes originais ainda estão vivos, testemunhas de uma história de coragem e perseverança que é celebrada com a indicação na categoria de Melhor Filme Internacional e Melhor Maquiagem e Penteados.
Sociedade da Neve é contada exclusivamente em espanhol e representa a candidatura oficial da Espanha na premiação. Bayona, que estreou como roteirista, colaborou diretamente com o autor do livro e próximo aos sobreviventes na elaboração do roteiro.
O que leva à primeira curiosidade: os sobreviventes dos Andes concederam ao diretor total liberdade criativa durante a produção do filme. Essa decisão tem sido amplamente elogiada pela precisão da história, com poucas alterações ou desvios em relação ao acontecimento, de acordo com um dos sobreviventes entrevistados em ‘Society of the Snow: Who Were We in the Mountain?’, documentário que narra os bastidores do longa.
Muitas vezes, filmes baseados em eventos reais enfrentam desafios quando as pessoas envolvidas estão diretamente ligadas à produção, tornando admirável a disposição dos sobreviventes em aceitar e apoiar a visão criativa de Bayona.
Isso explica as aparições de alguns sobreviventes como figurantes. Algo pode ser considerado clichê, mas que neste caso, adiciona um toque mais sentimental à história. Nos minutos finais, vemos o sobrevivente da vida real Carlitos Páez interpretando seu próprio pai no filme, que lê os nomes dos 16 sobreviventes. O pai de Carlitos, Carlos Páez Vilaró, era um renomado artista e pintor uruguaio que faleceu aos 90 anos em 2014.
O sobrevivente da vida real Nando Parrado também aparece no longa como um membro da família de seu eu mais jovem no aeroporto antes da representação de sua partida no fatídico avião, por Agustín Pardella. Nando Parrado esteve fortemente envolvido nas diversas representações e relatos da história real, aparecendo como ele mesmo em vários documentários sobre o assunto, como ‘I Am Alive: Surviving the Andes Plane Crash’ de 2010 e 2006 ‘Alive: Back to the Andes’.
O verdadeiro Roberto Canessa, creditado junto com Nando Parrado por fazerem a notável caminhada de 10 dias pelos Andes até o Chile, também aparece em Sociedade da Neve como um médico que ajuda a guiar a versão ficcional de si mesmo, interpretada com maestria por Matías Recalt. Na vida real, Canessa se tornou cardiologista pediátrico no Uruguai e palestrante motivacional. Sua presença no filme, orientando seu eu mais jovem em direção à segurança, é uma das cenas mais significativas de toda a produção.
Durante a produção de Sociedade da Neve, um dos aspectos mais fascinantes do processo de filmagem foi a abordagem meticulosa adotada pelos atores. O diretor Bayona decidiu seguir uma rota pouco comum ao filmar o longa em ordem cronológica, um feito incomum no mundo cinematográfico devido às preocupações financeiras e práticas. Essa escolha permitiu registrar de maneira autêntica a evolução física dos atores ao longo do tempo, desde a perda de peso dos personagens até detalhes como o crescimento das unhas. Enquanto alguns diretores poderiam ter optado por caminhos mais simples para criar um senso de realismo, Bayona optou por outras medidas para garantir a precisão de Sociedade da Neve.
Além disso, o elenco se destaca como um dos elementos mais marcantes do filme. Bayona fez uma escolha consciente ao selecionar principalmente atores pouco conhecidos para os papeis principais. No documentário, o diretor explicou sua decisão de evitar celebridades renomadas, buscando em vez disso talentos que já encarnassem as características das personalidades reais retratadas na história.
O documentário sobre os bastidores está disponível no YouTube e contém todos os detalhes sobre a produção.
Texto produzido em cobertura colaborativa da Cine NINJA – Especial Oscar 2024