Não existe ‘Duna B’
Excelência estética, imperialismo, cultura árabe e 4 jovens em Hollywood podem ser a receita para o melhor sci-fi do ano. Mas isso não é necessariamente bom
Chegou a hora de retornar ao deserto. Depois de dois adiamentos e um adiantamento, é hora de se reencontrar com Paul Atreides, Muad’Dib, Usul, Kwisatz Haderach ou Lisan al Gaib, qualquer um dos nomes que você tenha guardado para o personagem principal da história de uma guerra meio santa, meio ambiental e 100% fascinante.
Antes de mais nada é preciso dizer que a atmosfera que esse filme vem à tona mexe com sentimentos arrebatadores. O livro que deu origem a trama, de Frank Herbert, é a ficção científica mais vendida de todos os tempos, além de ser reconhecido como um dos pilares do gênero hoje em dia. A primeira adaptação para cinema foi feita nos anos 80 e é considerada uma pérola do sci-fi americano, mesmo que o próprio diretor, David Lynch, o considere o fracasso de sua carreira. Adicione a tudo isso o fato de quem dirige esta edição é o canadense Denis Villeneuve, um fã confesso dos livros que sempre quis ter uma chance de fazer a sua versão dos filmes.
E justiça foi feita. Duna – Parte 2 é, facilmente, o filme mais esteticamente agradável que vi nos últimos anos. Eu também sou movida a paixões, mas estou sendo honesta: nos primeiros 40 minutos de filme eu passei um bom tempo apenas olhando pra tela e pensando “que cena linda, que paleta linda, que figurino foda, que som impecável”. Enquanto os atores encenavam lutas muito bem ensaiadas, eu batalhava entre piscar o mínimo possível, para não perder nada, e fechar os olhos para ser consumida pela trilha sonora.
Eu não sou expert em nenhuma das áreas técnicas, mas posso dizer que sou especialista em me apaixonar e assim dizer que este é o melhor filme de ficção científica desta década, ganhando inclusive da parte 1, lançada em 2021. É claro que às vezes, a própria beleza trai outros objetivos do filme. Assim como no primeiro, existe um duelo entre a grandiosidade dos cenários e as narrativas detalhadas dos personagens. Às vezes, a história perde.
Neste caso, quem vem ao resgate é o elenco feminino. A dedicação de Chani, a ambição de Lady Jessica, o olhar atento da Princesa Irulan, a obstinação de Lady Margot e até as falas meio creepy de Alia Atreides, um bebê dentro da barriga que ao mesmo tempo é Anya Taylor-Joy, todas elas dão mais dimensões e camadas à literal jornada do herói-messias e apresenta um mundo que, apesar de árido e cheio de homens sanguinários em posições de poder, é realmente comandado por mulheres sibilantes por trás de véus aterrorizantes.
Finalmente vemos Zendaya por mais tempo que o previsto em comerciais de perfume e, por parte dela, é possível acreditar que de fato um romance proibido está em curso. Já é difícil amar em tempos de guerra, experimente tentar construir algum tipo de cumplicidade sendo seu interesse romântico de uma etnia diferente da sua, completamente ignorante nos costumes do seu povo e com o ego inflado constantemente por centenas de fundamentalistas religiosos, incluindo sua sogra. E no fim ele ainda casa com outra. Foda.
Timothée também cresceu desde a primeira vez que assumiu o papel de Paul. Não só em idade e massa corporal, mas fica evidente que o ator está mais bem equipado para interpretar uma figura que é tão carismática quanto um lutador habilidoso, que deve ser capaz de liderar multidões ao mesmo passo que constrói uma relação amorosa complexa. Ele finalmente se torna Paul Atreides e parece mais encaixado na constelação de atores mais velhos.
Quanto a Austin Butler, por fim deu pra esquecer que ele foi o Elvis. Uma atuação obscena e visceral faz você desejar pela presença dele no esperado 3º filme. Alguém também precisa dar um Oscar a Javier Bardem, só pelo fato de estar realmente se divertindo com a coisa toda.
Esse conjunto de pessoas deve ser levado em consideração: O cast de Duna era ao mesmo tempo o trunfo e o desafio do filme. Timothée, Zendaya, Florence e Austin são basicamente a imagem da nova Hollywood, seja em talento, presença, personalidade ou número de seguidores. São eles que trazem a geração Z para os cinemas, ou ao menos garantem os milhões de edits no TikTok. Parte do buzz do filme é alimentado pela presença dos quatro nas agendas de imprensa, enquanto a sessão de comentários especula o que Zendaya vai vestir no tapete vermelho, se Timothée teve ou não algum sentimento mais do que platônico por ela, se Florence já se recuperou do trem descarrilhado que foi sua presença em Don’t Worry Darling, e como Austin vai aparecer em eventos com Kaia Gerber, atual namorada, mas também centro dos rumores de traição do último relacionamento público de Zendaya.
Um minuto, é preciso um parênteses: “Nova Hollywood” não é só um termo para demarcar uma geração recente e sim o novo conjunto de valores esperados de quem está nos papeis principais dos grandes estúdios. Todos eles se envolvem em maior ou menor escala em causas sociais, refletem sobre a cultura do cancelamento, são vocais contra maltratar quem trabalha para você, não parecem perpetuar uma cultura competitiva e tóxica no set, não são adeptos a demonstrações públicas de alcoolismo ou abuso de drogas e parecem responsáveis afetivamente – pelo menos até o próximo exposed.
Não sei dizer se assistir Duna – Parte 2 foi uma pausa da maratona de filmes que estamos assistindo para o Oscar desse ano, ou se na verdade, me adiantei na lista do ano que vem, mas posso dizer que nada disso seria possível sem a cultura muçulmana. Não deveriam haver surpresas nesta afirmação: a língua dos Fremens é inspirada vagamente no árabe, assim como os costumes da etnia é embebida na estética muçulmana. As referências na vestimenta chegam a extrapolar os lenços usados em cena e chega ao hijabesco traje de Anya Taylor-Joy no tapete vermelho.
Quando em 2019, Zendaya foi anunciada como Chani, a principal representante de uma etnia claramente inspirada nos árabes, ela foi criticada em alguns nichos por aceitar um papel que deveria ser uma atriz do Oriente Médio. Particularmente ainda estou refletindo se seria bom ter muçulmanos interpretando um povo que é liderado por um salvador branco, fora outros acenos colonialistas na história, mas sabemos que Hollywood adora se apropriar de elementos de uma cultura sem de fato representá-las.
Para uma ficção-científica que explora a geopolítica por trás da extração de recursos, é impossível ser uma pessoa que lê notícias hoje em dia e não ver crise ambiental e o conflito em Gaza nas entrelinhas do filme. Sobre como alguém tão próximo a Palestina se sente ao ver símbolos da sua cultura serem usados sem “crédito”, recomendo a leitura do texto de Nadeine Asbali. Como você se sentiria vendo uma atriz famosa americana vestida da mesma forma que mulheres do seu povo vestem para velar os mortos de um genocídio de estado?
Ah, também é preciso avisar: Mesmo que satisfaça os fãs com um avanço considerável na trama se comparado ao primeiro, esta 2ª parte também termina sem uma conclusão, assim como o conflito nas terras santas e na apropriação de culturas nas narrativas milionárias. Este pode até ser o melhor filme de ficção científica feito recentemente por Hollywood enquanto ela tenta se reinventar, mas tem muito a aprender com quem está gritando desde o século passado.