
‘Nada’, um filme para quem escuta o silêncio e sente o peso da ausência
Estreia de Adriano Guimarães no longa-metragem transforma a memória em ficção simbólica
Por Hyader Epaminondas
Nada é o tipo de obra que fala muito, mesmo quando escolhe o silêncio. Uma poesia visual em suspensão, onde o tempo não corre, ele paira. Emoldurado pelo cotidiano das duas irmãs, o filme constrói sua narrativa entre memórias que voltam sem pedir licença e tecnologias que sussurram feito fantasmas mecânicos. É nesse espaço, onde a ausência se torna personagem e o vazio vibra com intensidade, que Nada finca suas raízes e justifica seu ritmo lento.
A proposta metalinguística de um filme dentro de um filme de denúncia é engenhosa e acrescenta camadas de leitura à experiência. Mas o longa não se apressa em entregar mensagens, prefere o percurso à conclusão. A câmera, com seus enquadramentos amplos, tremores discretos e pausas controladas, torna-se cúmplice de um confinamento íntimo, típico da calmaria que o campo oferece. Não é claustrofobia, é introspecção. Adriano Guimarães filma como quem espreita por entre as frestas do inconsciente, atento aos gestos mais sutis da presença e da ausência.
A direção aposta no som ambiente e nos planos abertos para diluir os personagens em sua paisagem, criando uma atmosfera contemplativa que contrasta com os conflitos internos e latentes das protagonistas. É um recorte sobre aquele momento de despedida que muitos não têm a chance de vivenciar com seus entes queridos. Ainda que melancólico, o filme apresenta uma resolução otimista no relacionamento das irmãs, cujo conflito se baseia nas escolhas que cada uma fez na vida: uma ficou, assumindo as responsabilidades deixadas pelos pais, enquanto a outra partiu para construir sua própria trajetória fora de casa.
É nesse vaivém de comunicação, ou da falta dela, que tudo ao redor do filme se encaixa e se desenvolve, sustentando a tentativa de reconexão entre elas. O paradoxo entre a serenidade exterior e o turbilhão interior é onde o filme encontra sua verdadeira potência. Cada quadro parece carregar o peso de uma lembrança sem forma, que insiste em retornar, como se o presente fosse, silenciosamente, uma despedida em andamento.
O silêncio no presente e um aceno para o passado
Não há grandes viradas, porque tudo já virou em algum ponto invisível da memória. Um gesto cotidiano, uma caminhada, um olhar, tudo isso se torna maior do que qualquer narrativa. O filme nos ensina a observar como quem varre um chão que ninguém pisa mais, com cuidado, com pausa, com reverência.
Também há aqui ecos do vazio, mas não um vazio desesperado. É um nada cheio de vozes caladas. A sensação de que há algo prestes a acontecer, embora nada realmente aconteça. Em Nada, os personagens não entendem como funciona esse mundo, e o filme tampouco tenta explicá-lo. Ele apenas observa, como quem olha a água parada à espera de que uma pedra invisível cause ondulações.
A tal “tecnologia estranha” que ronda os personagens atua como um espectro da contemporaneidade. Invisível, silenciosa, impessoal, mas determinante. Não é um vilão, nem um salvador. É uma lembrança do tempo presente, que age como uma atualização do que se entende por assombração. O futuro já nos atravessa, mesmo antes de o passado chegar.
Nada permanece como cheiro de chuva na terra seca, como palavras não ditas num quarto vazio, como o silêncio que fica depois de uma despedida. É um cinema de escuta, de espera, de percepção ampliada. E, sobretudo, de respeito ao invisível que nos molda, seja ele a memória, a ausência ou o extraordinário disfarçado de rotina.
O filme, distribuído pela Embaúba Filmes, chega aos cinemas no dia 31 de julho.