Movimento Social das Culturas: da emergência cultural à vitória sobre os vetos do desgoverno federal
A vitória épica, do conjunto das(os) fazedoras(es) culturais, é mais um exemplo de como a institucionalização da política pública federal na área da cultura é tão recente e traumática
Por Marcelo das Histórias
Foi uma vitória histórica, dessas que lava o corpo, sacode a alma e celebra o poder da cultura fora do eixo dos grandes centros, cultivada no Brasil Profundo e articulada em rede entre a tradição e a criação, o oral e o escrito, o popular e o pop, natureza e cultura.
A votação do Congresso Nacional, que no dia 5 de julho derrubou os vetos do presidente da República às Leis Aldir Blanc 2 e Paulo Gustavo de fomento à cultura, consagra um investimento de aproximadamente R$ 19 bilhões de investimento público federal nos próximos 5 anos, nos estados e municípios brasileiros.
Serão R$ 3 bilhões destinados à Cultura por ano, durante cinco anos, no marco da Lei 14.399/22, que institui a Política Nacional Aldir Blanc de Fomento à Cultura, e cerca de R$ 3,9 bilhões, através da Lei 195/22, conhecida como Lei Paulo Gustavo. Uma garantia mínima de sustentabilidade para a produção e o fazer cultural, em um período que será estratégico para o país, de reconstrução em várias dimensões, após o pesadelo do atual desgoverno federal.
Cultura e Democracia
Essa vitória épica, do conjunto das(os) fazedoras(es) culturais, é mais um exemplo de como a institucionalização da política pública federal na área da cultura é tão recente e traumática, assim como tem sido o processo de redemocratização brasileira. Essa fragilidade pode ser constatada pelas extinções do Ministério da Cultura em 1990, 2016 e 2019, cronologicamente nos governos Collor, Temer e Bolsonaro.
Nestes três governos, entretanto, os movimentos culturais, em suas diferentes expressões e setores, se articularam para um enfrentamento desses desmontes, protagonizando ações como o “Ocupa MinC” em 2016, que reverteu a decisão da extinção do MinC a curto prazo, no então governo de Michel Temer, sucessor ilegítimo da presidenta Dilma Rousseff, derrubada por um sofisticado golpe parlamentar.
Com a vitória de Bolsonaro nas eleições de 2018, obtida com outro golpe, o praticado contra o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, foi deflagrado oficialmente um discurso de ódio, censura, perseguição e criminalização, contra artistas e a comunidades e povos tradicionais. Ao assumir o governo federal, a extrema-direita brasileira se sentiu forte o suficiente para promover ataques mais violentos, agora com o controle do aparato estatal e o poder discricionário de controle do orçamento da União. A sanha fascista do bolsonarismo avançou violentamente, promovendo o desmonte de políticas públicas construídas em diferentes governos desde a redemocratização do país.
Em contra-ataque, as organizações indígenas, negras, culturais e artísticas do campo progressista intensificaram as mobilizações de resistência, nas redes, ruas, e praças de todo o país e via Congresso Nacional, Judiciário e no debate público através de múltiplos veículos de comunicação.
A mobilização em rede do campo progressista foi fundamental, sobretudo a partir da aprovação, no dia 20 de março de 2020, pelo Congresso Nacional, do Decreto Legislativo nº 6 e da Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional Decorrente do Coronavírus (covid-19) no Brasil. A partir dessas decisões, todo o setor cultural brasileiro sofreu de forma profunda e imediata os impactos econômicos e sociais da pandemia, que ocorreram justamente no âmbito de um governo anti-cultura e anti-vida, levando à paralisação, a curto e médio prazo, de grande parte de suas atividades.
A Mobilização pela Lei de Emergência Cultural Aldir Blanc 1
Logo, porém, houve uma reação imediata dos movimentos culturais brasileiros, que demonstraram especial vitalidade e organização política. Por todo o território nacional foram iniciadas centenas de reuniões virtuais, auto-organizadas pela sociedade civil, na busca de apoio do setor público à atividade cultural, via casas legislativas e governos municipais, estaduais e federal.
Neste cenário de mobilização, a Mídia NINJA passa a promover junto a outras iniciativas uma série de encontros virtuais de caráter nacional, com o objetivo de somar esforços na busca de um plano emergencial para a cultura.
No Congresso Nacional, especificamente, emergiram diversas iniciativas parlamentares, geradas a partir de diálogos com a sociedade civil, propondo medidas emergenciais de apoio ao setor cultural. Por ter sido o primeiro apresentado em caráter oficial, o projeto de Lei 1075/ de 2020, de autoria da deputada federal Benedita da Silva (PT), acabou apensando outras proposituras com propósitos semelhantes.
Neste contexto frenético e polifônico, nasce a Articulação Nacional de Emergência Cultural, composta por agentes, comunicadores, articuladores, artistas, parlamentares, ativistas, conselheiros e gestores, coletivos, organizações e movimentos culturais de todo o Brasil. A Articulação passou a estabelecer um diálogo permanente com os Parlamentares e Fóruns de Gestores Públicos , no processo de elaboração de um Projeto de Lei Federal unificada.
Para a construção da proposta legislativa, a Articulação Nacional contava com um grupo de trabalho denominado Convergência Cultural, que reunia técnicos legislativos e formuladores de políticas públicas de cultura em diversos subgrupos com pessoas de todo o país. Essa rede de atores, por sua vez, se comunicava de modo permanente com a deputada Jandira Feghali (PCdoB/RJ), que assumiu a função de relatora da unificação de todos os projetos de lei apresentados no Congresso. A conjunção das iniciativas parlamentares foi batizada, pela Articulação Nacional naquele momento de Lei de Emergência Cultural.
A construção legislativa foi impulsionada por diversas ações, entre elas o Ministério Popular de Cultura e o Canal Emergência Cultural, um grupo de articulação e comunicação permanente, que envolveu representantes do Fórum Nacional de Secretários e Dirigentes Estaduais de Cultura, Entidades Municipalistas, Parlamentares e Articuladores nacionais das mais diferentes áreas.
Entre outras ações, o Ministério Popular da Cultura e o Canal Emergência Cultural promoveram uma série de Web Conferências, com presença constante da relatora da Lei de Emergência Cultural, a deputada Jandira Feghali. Essa série de atividades possibilitou uma ampla escuta ativa e uma costura de um consenso progressivo, para se chegar na versão final do texto e a sua aprovação em 40 dias, por ampla maioria, no Congresso Nacional, ainda no ano de 2020. Esta conquista ocorreu em pleno período crítico da pandemia e garantiu um primeiro respiro e socorro aos povos da cultura.
Impactos da Lei Aldir Blanc 1 e a Aprovação das Leis Paulo Gustavo e LAB 2
Acima de tudo, o processo que levou à aprovação da Lei de Emergência Cultural, ou Lei Aldir Blanc 1 (LAB-1), foi um percurso pedagógico e dialógico, com a Escola de Políticas Culturais e centenas de iniciativas atuando de modo coletivo, participativo e democrático, o que proporcionou um estado permanente de Conferências e Diálogos Nacionais. O resultado foi uma extraordinária execução de 3 bilhões de reais, distribuídos por todos os estados e 4700 municípios. De fato, a LAB 1 se tornou uma referência sem precedentes, como mostra a recente pesquisa do Observatório de Economia Criativa da Bahia. O estudo compara o volume de recursos da LAB 1 e da Lei Rouanet no Ano de 2020, conforme indicado abaixo:
Lei Rouanet (2020)
Total de Projetos: 3.254
Média por projeto: R$ 460.879,00
Lei Aldir Blanc (somente Estados)
Total de Projetos e Beneficiários: 62.264
Média por projeto: R$ 24.088,30
Os números comparativos acima são uma pequena amostra da capilaridade e importância da execução da LAB 1, enquanto a Lei Rouanet, que já trouxe uma importante contribuição, precisaria ser revista e aprimorada, visando a sua democratização.
Com a LAB 1, foram abertas chamadas públicas e editais culturais em milhares de prefeituras, o que representou uma inovação pela nova forma de cálculo para subsídios a espaço culturais nos mais diversos segmentos do mercado e aos territórios das matrizes culturais. A LAB 1 também fomentou redes municipais e regionais, temáticas, setoriais e nacionais, que promoveram buscas ativas aos produtores culturais e mutirões permanentes entre gestores públicos e sociedade civil.
Foi, enfim, um processo de aprendizagem descentralizado e eficiente, que proporcionou uma qualificação das administrações públicas municipais e estaduais. Governadores e prefeitos sentiram a potência que é investir na economia da cultura. Isso tudo fez com que o investimento público na cultura formasse um enorme consenso nacional para aprovação, entre 2021 e 2022, de novo por ampla maioria no Congresso Nacional, de mais dois projetos de lei de socorro e fomento à cultura, a Lei Aldir Blanc 2, de autoria da deputada Jandira Feghali e seus coautores, e a Lei Paulo Gustavo, de autoria do senador Paulo Rocha (PT) e seus coautores. As duas leis também são fruto das mobilizações que já estavam em curso, sendo catalisadoras de um verdadeiro Movimento Social das Culturas.
Vetos do desgoverno federal e o movimento para derrubá-los
Mas o desgoverno federal mostra mais uma vez seu ódio pela cultura brasileira e veta as duas leis. Para que os vetos absurdos fossem derrubados, o Movimento Social das Culturas entrou com mais força em ação, com o apoio a diversas iniciativas que envolveram diferentes atores culturais e se mantendo em estado permanente de Conferência.
Soma-se a esse estado de mobilização permanente um conjunto de múltiplas ações realizadas pelo MSC junto aos Parlamentares autores e apoiadores dos projetos culturais citados, e também às lideranças dos Fóruns Nacionais de gestores estaduais e municipais de Cultura. Fóruns, aliás, que desde do início da pandemia se mostram totalmente comprometidos com esta luta no parlamento.
Dezenas de outras organizações se uniram à mobilização, como os Comitês Paulo Gustavo, a Cuca da UNE, a Secretaria Nacional de Cultura da CUT, Associação Brasileira de Festivais Independentes (ABRAFIN) e outras, na realização de tuitaços, apoio na produção de peças gráficas do Designe Ativista, mutirões virtuais com centenas de fazedores culturais na busca de votos nas redes de todos os parlamentares, em uma polifonia ativista.
Três grandes caravanas foram a Brasília, reunindo artistas conhecidos do grande público ligados aos Movimento 342 artes e Associação Dos Produtores Teatrais (APTR), lado a lado com artistas locais e fazedores culturais comunitários, dialogando e pressionando os líderes do Congresso Nacional. Em uma constelação política do popular ao pop, que quando acionada faz história, como a, finalmente, consagradora histórica derrubada dos maléficos e ideológicos vetos presidenciais. Foi mais de um ano de mobilização e ação, até a derrubada dos vetos, na votação histórica de 5 de julho.
O futuro é agora
Tudo isso em um momento em que são lembrados os 200 anos da chamada Independência do Brasil e o centenário da Semana de Arte Moderna, que em 1922 propôs uma ampla reflexão sobre o imperativo de o país olhar para si mesmo e valorizar a sua cultura, a sua riqueza de matriz indígena, africana e europeia.
Assim, é hora de comemorar, de celebrar, mas também de juntar novas forças, novas parcerias, para outro estágio da luta, o da reconstrução nacional após a queda do governo de extrema-direita que procurou, mas não conseguiu, arrebentar com a cultura nacional. Não conseguiu, mas os estragos foram gigantescos. O que o Movimento Social das Culturas conseguiu em parceria com tantas iniciativas até agora é um tremendo sinal de esperança para os tempos que batem à nossa porta. Que venha a verdadeira independência, para a livre expressão do mosaico cultural brasileiro! Pois ela, a cultura e seus movimentos, está furiosa, amorosa e forte para eleger o operário que recolocará o Ministério da Cultura de Volta para o Futuro!