Por Lilianna Bernartt

Durante o 35º Cine Ceará, acompanhei a exibição de “Morte e Vida Madalena”, novo filme do cineasta Guto Parente, que encerrou a edição deste ano do festival. O filme, que conta com cenas realizadas no histórico Cineteatro São Luiz, foi exibido nele, em uma experiência cinematográfica daquelas que ficam na memória.

Guto Parente tem gosto pela dobra. Não apenas pela dobra narrativa, mas pela dobra do próprio cinema. “Morte e Vida Madalena” é um filme que se espelha dentro de outro filme, um exercício metalinguístico que surge como resistência: contar uma história e, ao mesmo tempo, contar a impossibilidade de contá-la.

Em “Morte e Vida Madalena”, acompanhamos a trajetória de Madalena (Noá Bonoba), uma jovem produtora de cinema que se vê atravessada por várias urgências ao mesmo tempo: o luto pela inesperada morte do pai, a gravidez já avançada e a responsabilidade de concluir um projeto deixado por ele — um filme de ficção científica de baixo orçamento. A situação se torna ainda mais caótica quando o diretor da obra, que também é seu companheiro, desaparece inesperadamente durante as filmagens, deixando-a diante de dilemas artísticos e pessoais. Entre a pressão da equipe, as memórias que a assombram e a necessidade de manter o projeto vivo, Madalena precisa encontrar caminhos para transformar o caos em criação, dando corpo a uma narrativa que mistura e traduz a intimidade, a invenção e a resistência do gesto de filmar.

O título já traz um eco inevitável: “Morte e Vida Severina”. O poema de João Cabral, que dramatiza a sobrevivência diante da morte cotidiana no Nordeste, encontra aqui um paralelo inesperado. A protagonista Madalena também caminha pelo território do impossível: existir plenamente num mundo que insiste em lhe negar o direito de ser. Se Severina atravessava a miséria social, Madalena atravessa a miséria simbólica — e a poesia, em ambas, é a forma de resistir. No corpo que insiste em viver, no enquadramento que se recusa a morrer, ressoa a mesma pulsação de Severina.

O cineasta ainda propõe um jogo de sucessão que torna a obra quase uma árvore genealógica de imagens. O sempre ótimo ator Carlos Francisco dá continuidade à sua parceria com Guto após o sucesso de “Estranho Caminho”, em que representava a figura do pai falecido em diálogo com o filho. Carlos retorna agora como o pai morto que se converte em presença fantástica, quase como se o cineasta criasse um arquivo afetivo de personagens e dores, permitindo que seus filmes se visitem e continuem a conversa. Essa lógica de sucessão atravessa a tela e escapa para a vida real: a memória de um filme fertiliza o outro, e assim o cinema se reinventa em continuidade, como um organismo que não aceita a clausura da morte.

Mas talvez o gesto mais radical de “Morte e Vida Madalena” seja o exercício de criar novos imaginários ao apostar numa protagonista trans. Num Brasil ainda marcado pela exclusão e violência, dar-lhe centralidade narrativa é um ato de imaginação política. Um dos pontos altos do filme é que ele não busca apenas a representatividade, mas sim a criação de novos imaginários: deslocar a travesti do lugar da margem, da piada ou do espetáculo voyeurístico para o centro luminoso da cena.

A linguagem de Parente é feita de camadas: morte e vida / real e ficção / o dentro e o fora do set. A cada dobra, o espectador é convocado a repensar não só a trama, mas o próprio ato de olhar. O resultado é um cinema de frescor, que não teme a autocrítica, que ri da própria precariedade sem glamourizá-la e que se assume como artifício, mirando no fantástico e atingindo o real.

Ao mesmo tempo, é impossível não notar a comicidade do absurdo que atravessa a narrativa. O caos do set, o desaparecimento súbito do diretor, a precariedade assumida da produção — tudo se organiza como engrenagens de uma tragicomédia. Parente brinca com o ridículo da própria máquina cinematográfica, expondo falhas e tropeços, transformando o desespero em gargalhada. O riso surge como parte da linguagem, não para aliviar a dor, mas para afirmar a vida em meio ao colapso.

Essa dimensão cômica, no entanto, não é gratuita: ela amplia a força política do filme. Ao rir da falha, do desmoronamento, do que parece impossível de sustentar, “Morte e Vida Madalena” mostra que também o riso pode ser resistência. No improviso, na desordem e no absurdo, nasce uma vitalidade que atravessa tanto a ficção quanto o real, lembrando que o cinema, mesmo diante do desastre, insiste em acontecer — e em reinventar futuros possíveis.

“Morte e Vida Madalena” é menos um filme a ser “assistido” e mais um filme a ser atravessado. Um percurso poético em tom de resistência, em que a morte não é fim, mas dobra: uma possibilidade de renascer em outro corpo, em outro quadro, em outro filme. Um cinema que, como Madalena, insiste em existir.