Monopólio da AmBev defendido pela prefeitura revoltou camelôs no carnaval do Rio
Esquema forçou um carnaval de poucas vendas para os camelôs, que chegaram a dormir na rua para permanecer mais tempos no serviço.
Esquema forçou um carnaval de poucas vendas para os camelôs, que chegaram a dormir na rua para permanecer mais tempo no serviço e, assim, conseguir lucrar um pouco com os blocos.
Publicado originalmente no portal de David Miranda.
Era tarde de sexta-feira de carnaval. As ladeiras de Santa Teresa já estavam apertadas de milhares de cariocas e turistas de todo mundo, que deliravam cada vez que o bloco dAs Carmelitas retornavam ao refrão de seu samba de 2018.
“Carmelitas vai passar
Beija o terço, bota o véu
É melhor vender cerveja
Que vender lugar no céu!”
A menos de dois quilômetros daqui, na Marquês de Sapucaí, o prefeito Marcelo Crivella vistoriava, o mais rápido que podia, o Sambódromo. Parecia correr para não ser obrigado a trombar com toda aquela selvageria carnavalesca que ele odeia e que, em poucas horas, transformaria o lugar. Na entrevista coletiva ao fim da visita, um dos repórteres perguntou:
– Os camelôs, em todos os blocos, estão reclamando do tamanho pequeno da caixa de isopor que a Antárctica dá para eles trabalharem. O que o senhor pode falar sobre isso?
– Qualquer problema com nossos patrocinadores não cabe a Prefeitura, cabe a eles! – respondeu o prefeito, que encerrou a entrevista por ali.
Com uma única frase, Crivella resumia sua opinião sobre as intensas disputas que tomariam a cidade e envolveriam camelôs, o monopólio da AmBev e guardas municipais nos próximos dias de carnaval. Em outras palavras, lavava as mãos e admitia que quem manda nas ruas do Rio, durante os dias mais importantes da identidade carioca, é a Antárctica, uma das principais marcas da gigante AmBev.
Ao controlar tudo, a Antártica exerce um escandaloso monopólio no carnaval de rua do Rio de Janeiro. O fato revolta foliões que são forçados a beber uma única marca de cerveja (de péssimo sabor ao gosto da maioria, aliás). Já estudiosos e figuras importantes da festa aqui do Rio reclamam da falta de diversidade e da afronta à própria identidade da liberdade do carnaval.
Quem sofre mesmo é o camelô
Mas quem sofre, na pele, todos os malefícios do monopólio são os vendedores ambulantes, os camelôs. São eles que precisam – além de vender cerveja sempre bem gelada – correr de um lado para o outro de acordo com o humor dos guardas municipais. São eles que passam noites em claro, abrigados em marquises, para proteger seus produtos. São eles que são obrigados a sofrer a humilhação – muitas vezes na frente dos filhos – de serem barrados de trabalhar pela cidade, como se estivessem cometendo algum crime. São eles que são obrigados a trabalhar com uma caixa de isopor completamente inapropriada para suas necessidades. São eles que têm produtos apreendidos e roubados, que imploram por uma oportunidade de apenas trabalhar na semana mais movimentada do ano, como qualquer empreendedor. É sobre eles que recai, com força perversa, a indecente mistura do poder do capital com o poder da força do Estado, como nos disse um senhor já idoso que vendia cervejas na Praça Mauá, no centro do Rio, em uma distância segura de um bloco que acontecia por ali.
“Só querem bebida a favor deles. Só Antártica, Skol Beats, água. Se botar outro tipo de cerveja, tipo Heineken e Amstel, não deixam. Se pegar guarda-sol de outra empresa, não deixam. Eles deviam deixar todo mundo vender o que quer vender. É tudo produto comprado! Não tem nada roubado! Mas eles só deixam se for da Ambev, outra não pode. Outra coisa: só pode trabalhar com carrinho pequeno. Essa caixa pequena é como ser escravo. Tem que botar e sair puxando. Mó pesado para caralho, no meio da muvuca. Uma caixinha pequena dessa não dá vencimento para um bloco. Aí você tem que fazer 10 viagens, andar para caralho para encher uma caixinha pequena”.
Uma senhora ali perto, também já acima dos 60 anos, fez questão de acrescentar:
“Eu acho um absurdo. Todo mundo precisa de ganhar o pão. Já tá difícil de emprego. Tá muito difícil de emprego, tá muito, tá muito. Cê bota um currículo, não tem serviço. Meu filho tem estudo, tem posição. Meu filho bota currículo e não é chamado. Isso é um absurdo. Aí todo mundo vem para cá. Aqui dá para ganhar algum dinheiro. Nem que seja uma vez no ano. A bondade no coração de todo mundo é que todo mundo tem que sobreviver. É só a Prefeitura deixar, o governador, é só deixar. Uma vez tive toda minha mercadoria apreendida. Eu ajoelhei na frente deles e roguei: vocês têm que passar fome porque hoje vocês vão deixar muitas crianças com fome”.
Mesmo quem tem credencial pode ter mercadoria apreendida, caso venda cerveja de outra marca. (As fotos não correspondem necessariamente aos ambulantes que deram depoimentos para a reportagem, quase todos sob anonimato).Nossa equipe passou vários dias, em dezenas de blocos, conversando com os camelôs. Não encontramos NENHUM camelô satisfeito. Eram reclamações contundentes e comoventes. Na Lapa, Luís, mais de 30 anos de carreira no ramo, desabafou, segurando o choro. Ele havia sido impedido, por um exército de seguranças privados, de entrar no Parque do Aterro do Flamengo, onde rolava o bloco do Sargento Pimenta.
“Isso aí não pode ser privado não! Privado é clube. Carnaval é de rua. Como vai fazer privado em praça? Em área de lazer? É nossa! Lá dentro, o carnaval é restrito. Quem não tá credenciado não pode entrar. Mas têm os vendedores deles lá dentro. Aí fode. Venho de São Gonçalo. Passo a noite na Lapa, vou para Ipanema, veio pro Centro. Não durmo. Vou dormir para perder? Olha aqui o que eu tô fazendo também: catando lata. Tenho seis filhos, tudo crescido com o dinheiro da pista. Vendendo cerveja. Mas é estressante. Eu me estressei aqui e descontei na minha mulher, joguei a bolsa ali. A gente tava desde sexta-feira na rua. Agora ela foi embora, braba!”
Ao seu lado, um menino bem mais jovem, chamado Sandro, tentava sobreviver vendendo gelo aos ambulantes. Também fora impedido pelo monopólio de seguir sua viagem. Os grandes blocos contam com distribuidores de gelo exclusivos.
“Tem que tirar essa covardia desse monopólio. Vários pais de família querendo trabalhar. É por isso que o Rio de Janeiro tá assim hoje, com a violência que tá: porque não deixa trabalhar. Aí o trabalhador não sabe como se virar. Aí o trabalhador se revolta e sobe o morro. Aí dá troca de tiro, morre inocente. Só pode trabalhar quem é cadastrado e só pode vender cerveja da BOA. Eles querem que trabalhe apenas beneficiando eles. Você acha que a gente quer tá aqui? Você acha que a gente não preferia tá lá dentro? A gente estaria fazendo como o montão que tá lá, tomando um refri, uma cerveja, curtindo. Tô na rua. Não consigo voltar para casa, tô sem parar. Pra tomar banho na rua, eles também cobram. A gente tá correndo atrás do nosso. Toma cuidado, parceiro (avisa Sandro para mais um companheiro que seguia em direção ao bloco)!
Para entender como monopólio ferra o camelô
Modelo PPP
Desde o começo da gestão de Eduardo Paes, lá em 2009, o carnaval de rua do Rio de Janeiro vem se tornando um valioso produto a ser negociado pela Prefeitura. Reproduzindo outros modelos muito robustos na cidade desde então, o modelo adotado é o das Parcerias Público-Privadas.
Realizador, produtor e financiador
O chamado realizador do carnaval do Rio é a Riotur, órgão da Prefeitura. Mas a verdade é que pouco realiza. O principal papel da RioTur, teoricamente, é o de regular e fiscalizar o cumprimento do edital. Quem tem que executar o que está previsto no edital – ou seja, produção da festa, limpeza, instalação de banheiros químicos, decoração, estrutura médica e controle de tráfico – é chamado produtor do evento. No caso, é a DreamFactory, “representante” da Antártica (na palavra da própria RioTur). É a DreamFactory que realiza o processo de credenciamento dos camelôs. A empresa é onipresente nos grandes eventos da cidade, como no Rock in Rio, Maratona do Rio e Jornada Mundial da Juventude. O financiador do carnaval, no entanto, é a AmBev, responsável pelos custos do contrato, com direito à veiculação da marca. Em outra palavra, com direito ao monopólio. No Rio, ela escolhe exercer o monopólio da venda de bebidas através da marca Antárctica.
Credenciamento de ambulantes
Segundo o edital, 10 mil vendedores ambulantes poderiam ser cadastrados para o evento Carnaval do Rio 2018, que, ao contrário que se pode imaginar, não vai da sexta de carnaval à quarta-feira de cinzas, mas sim de 7 de janeiro a 18 de fevereiro, um marco arbitrário para se aproveitar do monopólio também no pré e no pós carnaval.
Nas ruas, dezenas de camelôs reclamaram para nossa equipe que se inscreveram para conseguir uma credencial – e, portanto, trabalhar legalizado na festa – mas não foram contemplados pelo sorteio. A DreamFactory, no entanto, alega que apenas 7 mil pessoas se inscreveram este ano cumprindo os requisitos e que, assim, todos que cumpriram estes requisitos foram credenciados. Segundo a empresa, era preciso apenas ser maior de 18 anos, brasileiro, morador do município do Rio de Janeiro e apresentar CPF e RG.
Alguns aspectos deste credenciamento demonstram que não há qualquer diálogo com a imensa categoria de trabalhadores ambulantes. Primeiro porque o sorteio não privilegia quem tem a venda ambulante de cerveja como profissão de janeiro a janeiro. Um pedreiro, como conhecemos, conseguiu a credencial, enquanto um ambulante de 30 anos de carreira não. A situação revolta alguns, como uma camelô de 28 anos que conhecemos na Lapa:
“O errado é que a gente trabalha o ano todo e chega no carnaval e eles colocam as pessoas que nem trabalham com evento, com carnaval, não sabem onde ir, onde são as ruas, onde são os blocos. E a gente que trabalha é discriminado“.
Outro aspecto que prova o abismo entre a DreamFactory e os ambulantes é a obrigação dos trabalhadores serem residentes no município do Rio. Muitos camelôs, numa megalópole como o Rio, vêm de cidades vizinhas imensas, como São Gonçalo, Duque de Caxias e Nova Iguaçu. Boa parte deles preferem, durante o carnaval, nem voltar para suas casas à noite. Para ganharem tempo na pista e assim aumentarem a chance de ter algum lucro nesta época do ano, eles preferem dormir pelas ruas, embaixo das marquises ou em cima das caixas de isopor.
Caixa Pequena
A principal reclamação dos ambulantes credenciados é o tamanho da caixa de isopor – sem falar da qualidade dela, que quebra facilmente. A caixa é pequena, de apenas 40 litros. Trabalhadores ambulantes do Rio utilizam caixas de isopor de até 300 litros, quase sempre em cima de triciclos, para conseguir lucrar dignamente. É o que reclama, por exemplo, o camelô Henrique, figura presente em diversos eventos pela cidade.
“Aí eles dão uma caixa de 40 litros para se defender. Como vai se defender? Aí tem um problema de coluna, como eu tenho… Faz como?”
A DreamFactory alega que as dimensões da caixa estão especificadas no edital da Prefeitura e que “é necessário que o ambulante tenha boa mobilidade de modo a não atrapalhar a evolução dos desfiles de também de modo a evitar atrasos nas operações de devolução do espaço público”. No entanto, camelôs experientes enxergam outros motivos para obrigar as caixas pequenas. É o que diz Idison, do Movimento Unificados dos Camelôs:
“A empresa não iria fazer toda essa movimentação se não fosse interessante comerciamente para ela. Mas mais do que isso: aquele isopor azul, aquele boné, aquele colete que os camelôs recebem tão promovendo a marca. Eles nem chamam de camelô, eles chamam de promotor de venda também. E é verdade: mais do que vendendo, eles estão promovendo a AmBev, a Antarctica. A gente deveria estar diante de um Executivo que deveria cumprir a lei. A lei que rege o comércio ambulante na cidade, aprovada no ano passado, sancionada pelo próprio prefeito (lei 6272/17) estabelece que o tamanho do espaço que o camelô tem para trabalhar é de 1m por 1,10m. Então é a AmBev que dita para a cidade que o camelô vai ter que pendurar o isopor que ela quer? Em detrimento de quê? A AmBev induz a Prefeitura a descumprir a lei? Não faz nenhum sentido! Se esses trabalhadores têm que trabalhar por uma organização, que seja dentro da lei”!
A lei a que Idison se refere foi tema de uma ampla discussão na Câmara de Vereadores no ano passado. Ela traz avanços para os camelôs, mas ainda sim não os satisfez por completo. Os vereadores do Rio rechaçaram uma emenda, da bancada do PSOL, que queria extinguir o esquema de monopólio nas grandes festas da cidade. Hoje a cidade e os camelôs, como se vê, pagam o preço desta decisão.
Sem credencial
Se mesmo credenciado é difícil trabalhar, sem credencial a situação é pior ainda. Teoricamente, quem não tem credencial não pode trabalhar no carnaval de rua do Rio. Mas, na política real, a situação é outra. Os trabalhadores sem credencial procuram os blocos não oficiais, fora da lista da Prefeitura, onde a fiscalização é bem menor. Ou então ficam ao redor dos grandes blocos para vender cerveja para quem chega ou para quem sai do bloco. Dentro dos blocos grandes, melhor local para a venda, é o lugar mais difícil de estar – e o mais perigoso também. É ali que estão os guardas municipais e onde as maiores apreensões são feitas.
Esse ano, uma novidade revoltou ainda mais os ambulantes. A DreamFactory contratou um batalhão de seguranças – que eles chamam de “equipe de controle de acesso” – para evitar que os ambulantes não cadastrados se aproximassem dos grandes blocos. No domingo pós-carnaval, no desfile do Monobloco, foram contados pela nossa reportagem 242 seguranças (contratados a uma diária de R$70) para a função. A DreamFactory respondeu, em nota, que “a função principal era de evitar o acesso de materiais como garrafas de vidro, materiais cortantes e outros que possam oferecer risco aos foliões”.
Produtores locais também sofrem
Além de quem vende, quem fabrica cerveja que não é da AmBev, claro, também sofre. A crescente onda das cervejarias artesanais brasileiras, motor vivo de emprego e renda, é esmagada pelo monopólio. É o caso da Cervejaria Molotov, por exemplo. Regularizados recentemente, os sócios da empresa sonhavam em aumentar as vendas no carnaval do Rio, lotado de turistas. No entanto, ficaram frustrados com os impedimentos impostos pela Prefeitura e pela AmBev. Escolheram se arriscar apenas poucas vezes e, claro, evitaram os blocos grandes, que seria uma oportunidade perfeita para deixar a marca mais conhecida. Um dos sócios, à espera de um desfile, desabafou:
“Essa relação do capital com o Estado chegou num grau de afinidade que no carnaval tem esse monopólio da Antarctica. A gente é produtor e vende diretamente pro consumidor. A gente vende o ano todo. Aí chega no carnaval que é um momento que a gente pode aumentar o capital da empresa, crescer, quem sabe num futuro próximo oferecer mais emprego, carteira assinada, direitinho, a gente não consegue. É difícil, a gente não consegue quebrar o monopólio. Aí tem a repressão da Guarda, aí tem segurança privada. Aí que eu falo da afinidade do Estado e do Capital. O cara consegue ter o governo para si. O empresário usa a máquina do Estado e as supostas leis para proteger. Aí num bloco não pode entrar com uma garrafa de cerveja. Mas o que está por trás? Nada pode entrar que não seja Antarctica. Pro consumidor é pior ainda: ele só tem Antarctica para beber. Até turisticamente é ruim. O cara vem de fora e não pode beber nada além de Antarctica, não pode provar o que é produzido localmente, cerveja de qualidade e até melhor num aspecto de saúde. Isso tudo é muito ruim para a gente, para cidade e para o carnaval em si.”
Apreensão suspeita e desvio de função
Não se pode dizer que a Guarda Municipal e a Controladoria de Gestão do Espaço Urbano (órgão da Secretaria Municipal de Fazenda) tiveram um comportamento extremamente repressor este ano. No entanto, muitas apreensões suspeitas foram flagradas por nossa reportagem. No desfile do Monobloco, vimos um grupo de quatro guardas circulando pelo bloco e recolhendo, em uma sacola branca, cervejas em garrafas de vidro. Não havia qualquer guia de apreensão ou lacre nos sacos. Tampouco vimos os materiais serem entregues aos caminhões de recolhimento da Secretaria da Fazenda. Ao contrário, os guardas levavam as cervejas para o próprio furgão da corporação, dedicado ao transporte de pessoal. Lá de dentro, não sabemos para onde o material foi.
O que chama atenção neste tipo de apreensão, também, é o desvio de função. A Guarda Municipal não tem como competência fazer este trabalho de repressão ao camelô. Ela, no máximo, pode dar segurança ao fiscal da Secretaria de Fazenda, este sim, responsável por apreensões. Para os camelôs, é revoltante ver que a Guarda trabalha para reprimir suas vendas e pouco faz para combater os roubos e furtos dentro dos blocos de carnaval. É o que nos disse, por exemplo, um ambulante que trazia para o bloco sua mulher e seu filho de 7 anos de idade e tinha acabado de ver uma apreensão de cerveja de um colega.
“O monopólio atrapalha. A gente tá fora do mercado do trabalho e tá tentando ganhar um dinheiro honesto. Revolta, revolta, revolta, revolta total. Tamo tentando pagar nossas contas, criar os filhos. A gente se sente revoltado com o monopólio, que está escrachado. Os guardas estão aí para só deixar vender o que é da marca. Ou seja, eles tão trabalhando para a marca. Vi muito guarda em cima do camelô e vi muito trombadinha roubando as pessoas. Em vez dele se preocupar com a segurança, se preocupa em reprimir o trabalhador.”
As apreensões são um terror para a vida dos camelôs, que, sem o ganho do dia, muitas vezes não têm um fluxo de caixa suficiente para conseguir comprar a mercadoria do dia seguinte. É o que nos conta Alessandra, mais uma vendedora revoltada, num bloco em Santa Teresa.
“Eu acho errado sim o monopólio! Nós tamo trabalhando honestamente. Eles não deixam nós trabalhar! A gente acorda 4 ou 5 horas da manhã para trabalhar e eles ficam atrapalhando nós. É nosso trabalho. Eles ficam atrasando. O trabalho já tá dificil hoje em dia, então a gente procura ganhar dinheiro de alguma forma. Eu sou baleira, vendedora de bebida… Eu já perdi mercadoria, já perdi carrinho, ja perdi triciclo. Eu dei nota fiscal. Tenho nota fiscal de tudo. Aí como o que o Brasil vai para frente se eles levam a mercadoria que a gente bota para trabalhar? Eu por exemplo boto R$400 reais de mercadoria. Se eles levarem, como vou trabalhar amanha? Não vou ter dinheiro para trabalhar”.
O depósito e mais suspeitas
Não é de hoje, não é apenas desta gestão que os ambulantes reclamam dos trâmites da apreensão, do transporte e do armazenamento dos produtos apreendidos. Ouvimos reclamações de pessoas que já viram os próprios guardas que fizeram a abordagem beberem das garrafas de água apreendidas. Há denúncias ainda mais graves em relação à revenda do material apreendido. Como ouvimos de uma senhora ambulante, que trabalhava num bloco do Largo de São Francisco de Assis.
“Eles tomam mercadoria e pior – e eu mesmo falo por experiência própria – depois vendem. Eu já comprei deles. Falo com segurança: tem Guarda Municipal que toma mercadoria e vende para outro camelô. Eles revendem! É mercadoria, é carrinho, triciclo”.
Questionada pela nossa reportagem, a Secretaria da Fazenda nos respondeu por meio de nota: “Os itens apreendidos são enviados ao Depósito Público Municipal, em Bonsucesso. No caso de alimentos industrializados e bebidas não alcoólicas, o material é doado para instituições de caridade. Os alimentos perecíveis e as bebidas alcoólicas são descartados. Para reaver o material, a pessoa que assinou o auto de infração deve comparecer ao depósito em até cinco dias úteis para dar entrada no processo de devolução, apresentando os documentos de identificação pessoal (RG e CPF), um comprovante de residência, a primeira via do auto de apreensão e um documento que comprove a posse do material, como uma nota fiscal, por exemplo”.
Fomos até o depósito de Bonsucesso na sexta-feira da semana do carnaval. O galpão não tem qualquer identificação que ali funciona algum serviço público. Justamente no dia de nossa visita, uma queda de luz deixava o prédio sem funcionamento. Mesmo assim, pela brecha da porta, conseguimos fotografar os produtos apreendidos.
Imprevisibilidade e falta de dignidade
Outro fato chato, que incomoda todos os camelôs, é a imprevisibilidade da postura da repressão. Nunca está completamente claro onde pode e onde não pode, o que pode e o que não pode. Encontramos, numa rua do centro do Rio, um ambulante revoltado por ter saído para comprar mais cerveja e, na volta, não ter encontrado mais o seu isopor.
“Eu saí para comprar mercadoria, quando eu voltei… “não pode mais”. Quando eu voltei, o isopor não tava aqui. Isso aqui atrapalha. Se uns podem, acho que os outros deveriam poder. A gente só quer trabalhar, levar o pão, acabou. O isopor pequeno é outro problema que tem que ser resolvido…. E a questão de vender só a cerveja deles. Isso prejudica muito, porque você não pode botar outra marca. Como vai fazer? Toda a hora você tem que vir, encher o isopor, perde tempo, perde dinheiro”.
Na Estação de Barcas da Praça XV, já no período definido como carnaval pela Prefeitura, havia um aviso de que nenhum trabalhador que não fosse credenciado poderia desembarcar para trabalhar no bloco que estava acontecendo na Ilha de Paquetá. No entanto, flagramos trabalhadores da barca, ao fim do dia, recebendo cerveja de ambulantes em copos discretos.
Outro ambulante, em um bloco perto do porto do Rio, nos trouxe mais uma reflexão importante: a Prefeitura não se preocupa com a dignidade do trabalhador. Não oferece sequer banheiro para quem tem que passar o dia inteiro, de pé, na rua.
“Hoje chegamos as nove horas da manhã e não conseguimos entrar no bloco. Eu arrumei só 50 reais. Para alimentar em casa, quem tem filho, é complicado. É culpa da Prefeitura. Outra coisa errada: põe um monte de guarda para multar quem tá mijando, mas não consegue botar banheiro para nós”.
Os lobbys e os monopólios: perigos para o futuro
É claro que a AmBev não é a única empresa a dar as cartas dentro da Prefeitura. Marcelo Crivella, assim como Eduardo Paes, é um político que já se mostrou suscetível às pressões de grandes empresas para definir sua política. É assim no carnaval, é assim também, por exemplo, com o alucinado projeto de remoção de Rio das Pedras, uma maneira de abrir oportunidades para grandes empreiteiras da cidade realizarem projetos faraônicos.
No entanto, os camelôs mais atentos já olham lá na frente. Idison, do Movimento Unificado dos Camelôs, o MUCA, aponta como o lobby da AmBev é um sinal de que, em breve, o lobby das empresas bélicas pode fazer, por exemplo, com que os guardas municipais passem a portar arma de fogo.
“O que me estarrece é que tá completando um ano e nesse um ano ele não conseguiu dar inicio a um processo de organização do comércio ambulante. Mas para atender a Antarctica e a Ambev foi rapidinho. E olha que a AmBev já ganha o ano todo com o camelô. O camelô vende o ano todo o produto da AmBev. Lembrando que o trabalhador camelô vem se mobilizando, dentro da Câmara, para conquistar legislação para trabalhar de forma ordeira e organizada. O que nos preocupa é o seguinte: se ele atende a AmBev com essa força, quem ele vai atender no próximo passo dele? Seria a indústria bélica? Afinal, desde o ano passado, tem uma grande movimentação para que a Guarda Municipal use arma de fogo. Sem falar que a Guarda já usa arma. Aquilo que eles chamam de “arma não-letal”, é letal sim, porque eles espancaram camelôs recentemente na Praça Mauá e na Central do Brasil. A verdade é que o corte da Guarda Municipal do Rio é militaresco. O alvo número 1 dela é o comércio ambulante da cidade. Isso nos preocupa. Se sem arma de fogo as coisas já andam do jeito que estão, imagina os guardas, com essa formação extremamente truculenta, com arma de fogo na mão. Já temos um sem-número de vítimas de armas de fogo na nossa cidade, para quê mais armas? Nossa preocupação vai além da questão deste monopólio da AmBev, queremos saber qual será o próximo monopólio!”
Reorganização e estratégia para o futuro
Não será fácil vencer o monopólio da AmBev no carnaval. O atual contrato vai até 2020. No entanto, já tem muito ambulante com coragem e disposição para tentar mudar. A categoria tem um número absolutamente impreciso – diria até mesmo incontável – de trabalhadores, mas poucos se organizam em coletivos. As ideias de vencer o monopólio surgem com frequência na boca dos trabalhadores e, segundo alguns, passam por parcerias com as ligas dos blocos de carnaval. É o que diz, por exemplo, o camelô Henrique, que conversou conosco enquanto vendia cervejas num bloco do Buraco do Lume, no centro do Rio.
“Precisamos novas organizações, outros carrinhos. Minha proposta é fazer uma organização com a Liga dos Blocos para ver se a gente consegue tirar o carnaval da mão da AmBev. Os blocos vieram antes da AmBev. A AmBev veio depois. Mas quem manda? Quem paga mais”.