Iniciamos um novo ano e, assim como a cada ano vivido, renovamos as esperanças e a certeza de que o amanhã sempre pode ser melhor. Nessa crença seguimos firmes construindo possibilidade de uma vida mais digna, menos sofrida e menos injusta para todas, todos e todes, mas sobretudo para aqueles que tendem a ter a justiça social como o horizonte da sua existência individual e coletiva, e rogam para que seus dias e de seus semelhantes sejam melhores, que lutam e trabalham para produzir uma sociedade onde a vida seja, no mínimo, mais tranquila e viável.

Contudo, logo ao colocarmos os pés em 2024 nos depararmos com a intrigante e absurda notícia de uma CPI, Comissão Parlamentar de Inquérito, cujo objetivo é investigar as atividades desenvolvidas pelo Ministério do Padre Júlio Lancellotti, em São Paulo, junto às pessoas que vivem em condições extremamente desumanas e degradantes no local mundialmente conhecido como Cracolândia.

É no mínimo inquietante o fato de um país em franco desenvolvimento como o nosso, que luta para consolidar ideais democráticos, e que, torcemos seja mais progressistas, que rejeita qualquer possibilidade de golpe ao Estado Democrático de Direito e a fragilização das instituições democráticas legalmente constituídas a partir da construção cidadã da Constituição de 1988, conviva em seu mais rico estado com esse território de dor e caos.

A existência de pessoas vivendo em condição de párias e completamente sujeitas a todas as violências possíveis e inimagináveis é um verdadeiro fracasso coletivo.

Deveríamos agora estar destacando amplamente o empenho de todas as forças sociais e suas instituições em extinguir a Cracolândia e restaurar a dignidade das pessoas que ali se encontram. E o mais estarrecedor é que aqueles que deveriam empenhar-se nisso se juntaram em coro para solicitar a abertura da CPI, cujo escopo é a suposta ligação do padre Júlio Lancellotti com organizações suspeitas de ilícitos e a investigação de graves denúncias de pedofilia.

Assemelham-se aos religiosos contemporâneos de Jesus, que andavam às escondidas no subterrâneo, tecendo nas sombras ameaças, urdindo mentiras e armadilhas, concorrendo para a difamação, condenação e morte física de Jesus porque o invejavam, porque a sua presença, o seu ministério e o seu discurso escancaravam as suas misérias, as suas culpas e os seus pecados. Assim, hoje, o fazem aqueles que tentam destruir a imagem, difamar e silenciar o padre Júlio Lancellotti.

Estamos diante de um conjunto de situações que deve chamar muito atenção: primeiro porque são pessoas alinhadas ao poder do estado, inseridas na máquina pública e que se lançaram para vocalizar o discurso de ódio. Um discurso completamente avesso àquele que chamamos de cristão, com elementos de misericórdia, de amor e de total responsabilidade pela vida dos mais pobres, dos mais necessitados e dos que precisam do auxílio dos seus semelhantes para terem um mínimo de dignidade em sua existência.

Essas ações assustadoras têm que nos alertar para a constante denúncia da corrupção espiritual, moral e de ameaça ao alcance da cidadania plena por parte da maioria social do nosso país. Não podemos desviar nossa atenção da presença cada vez mais intensa de elementos religiosos fomentando os discursos raivosos e antidemocráticos, no seio do Estado laico. É fundamental concretizarmos ações no sentido de defender o Estado laico e o Estado Democrático de Direito, assim como as figuras que continuam, a despeito das adversidades, lutando pela defesa incondicional dos direitos humanos, como o padre Júlio e tantos(as) outras.

Que não nos calemos ante às injustiças e às tentativas de se sobreporem aos direitos adquiridos, à cidadania e aos direitos humanos.