Sou mãe e avó negra de uma família negra. Essa é uma parte constituinte de mim e por isso fico muito feliz em receber “feliz dia das mães” das pessoas que me amam. Mas não posso dizer o mesmo sobre ser parabenizada em propagandas de empresas ou pelos chefes do executivo municipal, estadual e federal. Neste caso, o sentimento que me toma é o de revolta. Revolta porque sei que é um discurso vazio. São parabéns que não vêm acompanhados de nenhuma política específica que torne a vida das mães menos massacrante.

Em primeiro lugar, é preciso garantir que ser mãe ou não ser mãe seja uma escolha da mulher. É preciso, então, que a saúde sexual e reprodutiva, e as desigualdades de gênero sejam tratadas desde a escola e com todos os estudantes, independente de suas identidades de gênero: porque, às vezes, por mais que não nos falte informação, nos falta coragem e apoio para exigir dos nossos parceiros o uso do preservativo e afirmar que não queremos (mais) um filho. É preciso que a saúde pública esteja do nosso lado, fornecendo métodos contraceptivos. Nenhuma mulher deve ser mãe sem querer.

Por outro lado, muitas mães são impedidas de serem mães. O estado do Rio de Janeiro notoriamente comete genocídio contra a juventude negra do estado. Semana sim, semana não, vemos uma mulher negra nos jornais chorando a morte do seu filho. Jonatan Ribeiro, de 18 anos, morador do Jacarezinho, filho de Monique Ribeiro, é somente um dos mais recentes. Jovens meninos e meninas negras são mortas por “balas perdidas”, execuções sumárias, grupos de extermínio, e deixam mulheres enlutadas com sua maternidade interrompida.

Mais uma violência que atinge as mulheres brasileiras, a mortalidade materna é altíssima no Brasil e no Rio de Janeiro – de acordo com os dados produzidos pelo Observatório Obstétrico Brasileiro de Covid-19, até maio de 2021, as mortes maternas entre mulheres negras foi 77% superior às das brancas. Mortes que seriam facilmente evitadas com acompanhamento pré-natal adequado, algo que tem sido negado às nossas gestantes devido à precarização generalizada dos trabalhadores do SUS. Na hora do parto, o desrespeito a nós é extremamente comum, e assim as mães se tornam vítimas de violência obstétrica, e seus bebês de violência neonatal, violências que só recentemente têm sido amplamente reconhecidas como tal. Mas no segundo domingo do mês de maio os responsáveis pelo descaso com a vida de mães e bebês nos dão parabéns. Parabéns pelo que, eu me pergunto? Por termos sobrevivido apesar dos seus esforços para nos matar?

Depois nos dizem que amamentar é um ato de amor e nos culpam se não conseguimos fazê-lo. Mas além de propagandas onde tudo é lindo e fácil, qual é o suporte dado para que mães sejam capazes de amamentar, se nem a licença maternidade (de apenas 4 meses) cobre o tempo mínimo necessário de aleitamento materno exclusivo (de 6 meses) preconizado pela OMS? Ser mãe é amor, mas também é muito trabalho. E em nosso país os trabalhos relacionados ao cuidado não são vistos como trabalho, e quando o são, não são merecedores de um pagamento digno; um nítido legado da escravidão, já que a maioria de quem exerce essa atividade é de mulheres negras. Mulheres mães são sobrecarregadas e são punidas profissionalmente por serem mães. As pessoas falam disso como uma fatalidade, como se não fosse possível ser de outra forma, como se ser mãe fosse sinônimo de se sacrificar e essa fosse a derradeira prova de amor pelos filhos. Mas as coisas não precisam ser assim.

Precisamos parar de romancear o esgotamento físico e mental das mulheres e substituir isso pelo reconhecimento de nós como cidadãs que necessitam de políticas públicas específicas. Por exemplo: recentemente a Argentina passou a considerar o cuidado materno como trabalho também para fins de aposentadoria, uma grande conquista para as argentinas e que precisa servir de inspiração também para nós. É preciso também que tenhamos cada vez mais escolas em tempo integral, que o acesso à creche e pré-escola seja universalizado, e que espaços de cuidado para crianças como o espaço coruja, lei de minha amiga Marielle Franco que foi aprovada após sua morte, saiam do papel. Muitas mães trabalham à noite, em sua maioria negras e pobres em atividades de cuidado e, ironicamente, não tem quem cuide de seus próprios filhos.

Em suma: a maternidade deve ser socialmente valorizada e não apenas celebrada com palavras vazias. E a única forma disso acontecer é termos cada vez mais mulheres mães, negras, feministas, socialistas e antirracistas nos espaços de poder. Não basta ser mulher: é preciso ter um compromisso com a vida do povo. A pesquisa histórica tem cada vez mais afirmado a importância das mulheres em momentos cruciais da história, como o papel fundamental das mulheres na Revolução Russa ou na resistência à escravização. Essas mulheres, que tinham que todos os dias prover a vida a seus filhos, sabiam exatamente o peso do custo da alimentação e do trabalho não pago. Nada mais atual nos tempos atuais em que o preço dos alimentos e do gás de cozinha levarem mais da metade dos brasileiros, 19 milhões de pessoas, à fome. Nós lutamos pela vida, pelo pão, por vacina, por acesso à saúde e à educação, por habitação, pelo meio ambiente, pelo bem viver, e contra a violência que nos mata todos os dias. Nós lutamos como uma mãe. Parabéns para nós.

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