Por Sofia Missiato Barbuio

Nos últimos quinze anos, a mobilidade urbana se consolidou como um dos principais temas das políticas públicas no Brasil. Durante esse período, investimentos significativos foram realizados para preparar cidades para grandes eventos internacionais, ao mesmo tempo em que manifestações populares, como as lideradas pelo Movimento Passe Livre em 2013, evidenciaram a insatisfação da população com a qualidade e o custo do transporte público. Desde então, a mobilidade urbana tem sido pauta central no desenvolvimento econômico e social do país, com um olhar mais atento às questões ambientais e de sustentabilidade.

Os protestos de 2013 marcaram o início de um período de instabilidade política e trouxeram à tona debates sobre tarifa zero e a necessidade de um transporte público mais eficiente e acessível. Estudos do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) apontam uma tendência de crescimento do transporte individual em detrimento do coletivo. Estudos no IPEA de Warwar e Pereira (2022) revelou o impacto das plataformas de mobilidade por aplicativo nas cidades brasileiras, além de destacar a expansão acelerada da frota de automóveis e motocicletas e a consequente redução da demanda por transporte público – uma queda superior a 30% nas últimas décadas. Esse fenômeno gera um ciclo vicioso: com o aumento da renda, cresce o uso do transporte individual, reduzindo a adesão ao transporte público e elevando os custos tarifários, agravando a crise estrutural do setor.

A pesquisa Origem e Destino 2023, conduzida pelo Metrô de São Paulo, revelou que o transporte individual correspondeu a 51,2% das viagens motorizadas na Região Metropolitana de São Paulo (RMSP), superando o transporte coletivo, que representou 48,8%. A pesquisa ouviu pessoas de 32 mil domicílios válidos (de um total de 100 mil procurados) dos 39 municípios da região metropolitana de São Paulo.

Além disso, o tempo médio de deslocamento por transporte individual aumentou, afetando especialmente quem possui rendas mais altas, O deslocamento médio manteve-se em 27 minutos. O declínio no uso do transporte público resulta em prejuízos expressivos, milhões de horas de trabalho e lazer são perdidas anualmente por pessoas presas no trânsito. Toneladas de carbono são emitidas na atmosfera. Opções de transporte menos seguras, como motos, são frequentemente adotadas como forma de escape do transporte público, com impactos expressivos no aumento de acidentes, lesões e mortes

Para o especialista como Rafael Calabria, geógrafo e ex-coordenador de Mobilidade Urbana do Idec, o transporte público no Brasil ainda é tratado como um setor econômico autossustentável, e não como um direito fundamental. Ele defende uma mudança no modelo de financiamento, com aporte de recursos públicos para garantir cobertura universal e qualidade mínima de serviço, independentemente da demanda em determinadas regiões. Apesar do avanço nas discussões e da tramitação de projetos de lei no Congresso, a arrecadação tarifária continua sendo o pilar principal do sistema.

O urbanista Nabil Bonduki, professor da USP e ex-secretário de Habitação e Cultura em São Paulo, reforça que, embora o discurso sobre mobilidade sustentável tenha se intensificado, os investimentos ainda priorizam infraestrutura viária. Medidas como o recapeamento de ruas superam as restrições ao uso de automóveis, e subsídios para veículos particulares e combustíveis permanecem em vigor, dificultando a transição para um modelo de mobilidade mais sustentável.        

Nova revisão do Plano Diretor de São Paulo

O Plano Diretor de São Paulo foi elaborado para estimular o transporte coletivo e a mobilidade ativa. Contudo, as revisões recentes alteraram sua essência, incentivando construções maiores e com mais vagas de garagem e subsolos, o que favorece o uso do carro. Bonduki alerta para os impactos ambientais dessas mudanças, como o crescimento de áreas impermeáveis e a ocupação inadequada de fundos de vale. Embora iniciativas como os caminhos verdes sejam alternativas para mitigar esses problemas, ele enfatiza que a ocupação urbana precisa ser repensada para evitar danos ambientais.

A revisão do Plano Diretor de São Paulo foi concluída em 2023 e sancionada em 8 de julho, Bonduki avalia que as mudanças foram na direção contrária ao necessário. A questão das APPs urbanas, ou seja, as áreas que estão ao longo dos cursos d’água. ‘’Elas deveriam ficar não edificantes, porque não tem sentido você construir numa área próxima ao fundo de vale um prédio com subsolo ou uma área impermeável. Então, isso é uma infraestrutura verde que precisaria ser implementada de uma outra maneira.’’

Paralelamente, a ampliação de áreas verdes ocorre de forma desigual, sem priorizar regiões carentes desses espaços. O crescimento das concessões de espaços públicos para a iniciativa privada também gera preocupações, pois pode restringir o acesso de populações de baixa renda a áreas de lazer e convivência, como observado no Vale do Anhangabaú e no Parque Ibirapuera. “O Vale do Anhangabaú está frequentemente cercado, o próprio Ibirapuera também”, destaca Bonduki, apontando que até serviços básicos nesses locais se tornaram inacessíveis. Para ele, não adianta ampliar áreas verdes se seu uso passa a ser limitado para pessoas de baixa renda.

Foto: Luiz França / CMSP

Cidade inteligente

O conceito de cidade inteligente emerge como solução para esses desafios, unindo tecnologia e planejamento urbano para otimizar a mobilidade, reduzir custos e melhorar a qualidade de vida. As cidades inteligentes utilizam análise de dados para aprimorar serviços públicos, tornando os centros urbanos mais eficientes e sustentáveis.

São Paulo em 15 minutos

O conceito de “cidade em 15 minutos” é uma abordagem progressista de planejamento urbano que busca garantir que todas as necessidades básicas dos moradores – como trabalho, educação, lazer, compras e saúde – estejam acessíveis em um raio de 15 minutos a pé ou de bicicleta. Criado pelo urbanista franco-colombiano Carlos Moreno, esse modelo visa reduzir a dependência de carros, diminuir congestionamentos e emissões de carbono, e promover um estilo de vida mais sustentável e equilibrado.

Essa ideia, que ganhou notoriedade durante a gestão de Anne Hidalgo em Paris, se baseia em descentralizar os serviços e oportunidades, tornando os bairros mais autossuficientes e vivos. Para isso, é fundamental investir em transporte ativo (caminhabilidade e ciclomobilidade), fortalecer o comércio local, criar espaços públicos de qualidade e melhorar a conectividade dos diferentes modais de transporte.

Foto: croix-roussien / Flickr

O verador Nabil Bonduki, argumeenta que, diante dos desafios climáticos enfrentados por grandes metrópoles, como São Paulo, é fundamental adotar estratégias urbanísticas que minimizem impactos como a formação de ilhas de calor. ‘’O Plano Diretor prevê a criação de 168 novos parques na cidade, que foram designados como Zonas Especiais de Proteção Ambiental (ZEPAN), garantindo restrições construtivas para preservar essas áreas.’’ No entanto, a implantação desses parques tem ocorrido de forma lenta, deixando os espaços vulneráveis a ocupações irregulares.

Ele aborda que é essencial revisar os Termos de Compensação Ambiental (TCAs), que frequentemente resultam na substituição de vegetação madura por árvores de pequeno porte, sem compensar adequadamente a perda de cobertura arbórea. “A ampliação da arborização urbana, especialmente em regiões com temperaturas elevadas, é uma solução urgente para equilibrar o clima da cidade.”

Outra medida relevante é a garantia de áreas permeáveis na reconstrução de imóveis, evitando a ocupação total dos lotes e priorizando construções em áreas já edificadas. ‘’Também há propostas inovadoras, como o projeto de lei das vagas vivas, que sugere substituir espaços de estacionamento por árvores, contribuindo para a redução de superfícies impermeáveis e para o aumento da vegetação urbana. Essas iniciativas são essenciais para tornar São Paulo mais sustentável e resiliente às mudanças climáticas.’’

Foto: Ciete Silvério/Governo do Estado de SP

Alguns exemplos 

O debate sobre novas fontes de financiamento tem ganhado força. Um estudo lançado no Congresso Nacional em 2023 avaliou a possibilidade de substituir o atual modelo de vale-transporte por uma contribuição fixa paga pelos empregadores, inspirada no sistema francês “Versement Mobilité”. Essa mudança poderia aumentar a arrecadação e reduzir drasticamente as tarifas de ônibus, tornando o transporte mais acessível.

Em Belo Horizonte, um novo projeto de lei baseado nesse modelo está em tramitação e já conta com apoio da maioria dos vereadores. A proposta prevê a eliminação do vale-transporte e a implementação de uma taxa paga pelos empregadores, isentando micro e pequenas empresas. Com a arrecadação estimada em R$ 2 bilhões anuais, o financiamento do sistema seria garantido, permitindo a redução ou até a eliminação da tarifa para os usuários. Além dos benefícios econômicos, a medida pode impulsionar o comércio local, ampliar o acesso da população de baixa renda a serviços e oportunidades, e reduzir congestionamentos e poluição. Se bem-sucedida, a iniciativa pode se tornar um modelo a ser replicado em outras cidades brasileiras, promovendo um transporte público mais eficiente e acessível.

Nabil Bonduki menciona diversas cidades que podem servir de inspiração para a mobilidade ativa e a sustentabilidade urbana no Brasil. Ele destaca, por exemplo, Maringá e Londrina, no Paraná, que desde sua fundação incorporaram parques e fundos de vale ao planejamento urbano. Outro exemplo relevante é Piracicaba, que preservou uma área verde significativa ao longo do rio, embora atualmente esteja ameaçada por empreendimentos imobiliários.

No cenário internacional, Bonduki menciona a abordagem da “cidade esponja”, adotada em algumas cidades chinesas, que prioriza a absorção da água da chuva por meio da permeabilidade do solo, reduzindo enchentes de maneira sustentável. Ele também cita o Parque do Flamengo, no Rio de Janeiro, como um caso bem-sucedido de aproveitamento de uma área conquistada ao mar, que poderia ter sido destinada à especulação imobiliária, mas foi transformada em um espaço público de lazer e contato com a natureza.

Outro ponto levantado é a necessidade de transformar infraestruturas cinzas em infraestruturas verdes. Ele sugere que piscinões, frequentemente utilizados em São Paulo para conter enchentes, sejam pensados de forma a integrar a cidade, funcionando como parques ou lagos, a exemplo dos lagos do Ibirapuera e da Aclimação, que atuam como reservatórios naturais. Além disso, ele defende a implementação de “piscininhas” em lotes individuais, permitindo a retenção e o reuso da água da chuva para usos como irrigação, limpeza e descarga de banheiros, o que contribuiria para a economia de água e a redução de enchentes.

Por fim, ele menciona cidades holandesas, que adotam sistemas de diques para proteger áreas abaixo do nível do mar, uma estratégia que poderia ser aplicada em regiões vulneráveis, como Porto Alegre e o entorno do rio Tietê, para mitigar os impactos das inundações.