Por Lilianna Bernartt

Alguns filmes nascem do acontecimento central; outros, do eco que ele produz. “Mirrors n. 3” pertence a esse segundo tipo — uma reverberação quase imperceptível do que já aconteceu e segue vibrando no corpo do presente. Para Christian Petzold, não interessa a ruptura, mas sim o desajuste: aquele instante em que o mundo retoma o movimento, mas a existência de alguém já não consegue acompanhá-lo.

Laura (Paula Beer) é socorrida por Betty (Barbara Auer) após um acidente de carro. Ao despertar, escolhe permanecer na casa da desconhecida, que, por sua vez, a acolhe sem exigir explicações. Nada é problematizado porque nada é nomeado. Não se trata de confiança imediata, mas de um tipo de união instintiva — um pacto através do silêncio.

Seguindo essa lógica, a casa de Betty não opera como refúgio, mas como mecanismo de suspensão. Petzold filma o cotidiano como uma encenação de estabilidade. Consertar uma cerca, pintar uma parede, consertar uma máquina de lavar louças: os gestos funcionam como mecanismos impeditivos da explosão. Assim, a normalidade não é descanso — é defesa. Não há sentimentos elaborados, mas sim manutenção, contenção.

Em termos de arquitetura narrativa, “Mirrors n. 3” se alinha à linhagem de histórias em que um corpo estrangeiro desloca um sistema supostamente pacificado — um corpo que chega sem ameaças, apenas para revelar que o equilíbrio anterior era falso. Petzold não dramatiza a perturbação; ele a deixa emergir como consequência inevitável. O espaço percebe antes dos corpos. A transformação não se dá pela ação, mas por contaminação.

E há um desconforto onipresente através da luz clínica de Petzold — clara demais para ser confortável. Tudo parece equilibrado, luminoso, até sereno — e é justamente essa serenidade incorreta que causa vertigem.
O filme não foca no conflito, mas no seu adiamento.

Mais do que sobre trauma, o filme investiga o momento em que a dor deixa de ser lembrança e passa a buscar onde repousar. A substituição não é intenção — é fenômeno orgânico. Nada se explica, nada se resolve. Petzold filma o invisível sem jamais tentar decifrá-lo — apenas lhe oferece um lugar onde existir.

Não há clímax, nem promessa. “Mirrors n. 3” permanece fiel à suspensão proposta — ao ponto exato em que nada explode, mas tudo, secretamente, se desloca. Talvez aí esteja sua força mais rara: filmar não a ferida, nem a cura, mas a deriva espectral de seguir vivendo.