Por Lilianna Bernartt

Expectativa é uma palavra que deve ser evitada no vocabulário cinematográfico no que diz respeito à crítica, dizem. Mas quando você vai assistir ao retorno do diretor Bong Joon-ho às telas pós “Parasita”, é quase inevitável que o coração cinematográfico fique a mil, o que é irônico, uma vez que Bong Joon-ho é mestre justamente na subversão de expectativas. E é exatamente dessa forma que ele retorna ao cinema de ficção científica com “Mickey 17”: subvertendo toda e qualquer expectativa.

O filme parte do livro homônimo do autor Edward Ashton e traz uma história que se passa em 2054, em que o planeta Terra já está irreversivelmente destruído e um projeto de colonização espacial é lançado para garantir a sobrevivência da humanidade. O protagonista, Mickey Barnes (Robert Pattinson), se alista ao projeto para fugir de suas dívidas na Terra. Sem ter muita informação, ele se alista na categoria de “Expendables”, uma categoria em que humanos servem como cobaias para testes, procedimentos e situações extremas.

“Expendable” = descartável.

A cada morte, seu corpo é clonado através de uma impressora humana.

Tendo em vista a questão ética que envolve a clonagem humana, o processo só fica autorizado fora da Terra e sob uma condição: é proibida a coexistência de duas versões da mesma pessoa. E é justamente aí que a problemática se inicia. Após ser enviado em uma missão suicida em um planeta alienígena, Mickey 17 acaba sendo dado como morto. No entanto, quando uma nova versão dele é impressa, a número 18, o problema surge: Mickey 17 não morreu.

Bong adota uma estrutura narrativa não linear e um tom pastelão em que a situação de Mickey se torna, ao mesmo tempo, tragicômica e desesperadora. Todo o projeto espacial é permeado pela desvalorização da vida humana, exploração das classes trabalhadoras e manipulação de massas, e, através da sátira, o diretor critica a insustentabilidade do mundo moderno e a ascensão de figuras autoritárias e populistas, como o comandante Marshall (Mark Ruffalo) e sua entourage fascista.

Contudo, apesar de uma proposta promissora, corroborada por uma mise-en-scène minuciosamente desenhada por Bong Joon-ho, a crítica em “Mickey 17” nem sempre impacta. O filme aposta em uma série de excessos e repetições que, embora divirtam, acabam por se desgastar rapidamente, enfraquecendo a crítica-base, tendo como exemplo disso o “molho perfeito” de Toni Collette (sempre ótima) e sua caricata obsessão por uma estética de pureza racial.

Os excessos aos quais me refiro refletem tanto na estrutura narrativa como na estética. O filme todo é carregado por excessos visuais e de subtramas que se desenvolvem de forma arrastada, o que provoca a sensação de um emaranhado de questões sem tanta força de engajamento proposta inicialmente.

Nesse sentido, é inevitável o comparativo com outros trabalhos de Bong Joon-ho, que apresentam também uma crítica social ramificada, mas meticulosa e potente. O que se nota é que, em seu primeiro trabalho pós-Oscar — ou seja, pós-validação de uma estrutura cinematográfica hollywoodiana —, vemos traços histriônicos, reconhecíveis nas obras do cinema americano. Não quero suscitar que o diretor não tenha mantido sua essência criativa e crítica, mas sim que há uma visível contenção ou modulação da mesma nesta proposta, em que assume uma história já preexistente.

Dito isso, o que se tira de “Mickey 17” é um diretor extremamente talentoso, mestre em esquadrinhar uma crítica social contundente e necessária e extrair do público a identificação e o embaraçamento simultâneos.

Nada com Bong Joon-ho é aleatório, nem mesmo a escolha de Robert Pattinson, um dos atores mais hypados da atualidade, como “cavalo” para discussão acerca da falta de humanidade, valoração da vida, empatia, pensamento e julgamento crítico — individual e social. A ideia de simetria é uma metáfora interessante sobre identidade, e Pattinson abraça com força a brincadeira e justifica sua elogiada tecitura artística, trazendo às telas uma multiplicidade interessante e muito bem construída em cada um de seus Mickeys, fazendo com que a relação entre eles seja, definitivamente, um dos pontos mais altos do filme.

Para concluir, a união entre Bong Joon-ho e Robert Pattinson é, sem dúvida, muito frutífera e, ainda que o filme não se sustente de forma tão sedimentar quanto talvez a tal da ‘expectativa’ nos tenha influenciado a acreditar, mesmo assim proporciona um entretenimento de qualidade, deixando, contudo, um gostinho pelos próximos passos de Joon-ho.