
Metodologias feministas de pesquisa fortalecem a agroecologia nos territórios
Corpo-Território e Etnomapeamento Feminista fazem parte de uma série de metodologias adotadas pelo projeto GENgiBRe
“Eu nunca ia imaginar que, quando eu falasse do meu corpo, ia poder entrar em várias situações do território que podem até parecer que não têm nada a ver, mas têm. Por exemplo, como o desmatamento, a falta de água, os agrotóxicos, a mineração influenciam o meu corpo? Quais são as consequências que o meu corpo recebe das ações da sociedade e de políticos no território?”, reflete a agricultora Janete Dantas ao falar sobre uma metodologia de pesquisa chamada Corpo-Território.
Janete é integrante do grupo União de Agricultoras Agroecológicas de Itaoca/SP (UAAI) e, com outras mulheres de quatro bairros do seu município, participou do projeto de pesquisa-ação GENgiBRe – “Relação com a natureza e igualdade de gênero. Práticas e mobilizações feministas na agroecologia no Brasil”. O projeto, que finalizou no último mês de abril após quatro anos de duração, acompanhou seis coletivos de agricultoras agroecológicas no Vale do Ribeira (SP) e na Zona da Mata (MG), entre eles, o grupo UAAI.
Janete explica que, a partir do desenho da silhueta do corpo da mulher em uma das atividades do projeto, puderam analisar coletivamente vários aspectos relacionados a questões pessoais, familiares e ao propósito de vida dentro do território onde moram.
Para ela, a metodologia possibilitou também que as agricultoras analisassem diferentes realidades presentes no mesmo município, como a situação enfrentada pelo Quilombo Cangume. Localizado em Itaoca (SP), o quilombo possui pouco saneamento básico, grande dificuldade de acesso à água potável e estradas em péssimas condições de manutenção. Como não há transporte coletivo disponível e poucas pessoas da comunidade possuem carro próprio, até a ida ao posto de saúde se torna um grande desafio para moradoras e moradores.



Mesmo conhecendo bem o município onde mora, Janete revela que não tinha a real dimensão das dificuldades enfrentadas por uma comunidade tão próxima da sua. “Eu moro a oito quilômetros e eu não percebia essa diferença, essa dificuldade. A gente sabia, mas não tinha noção do tanto que as mulheres sofrem, que o corpo delas sofre nessa situação de, por exemplo, você ter que levar um filho no médico. Lógico, a gente já sabia que era difícil, mas não tinha a dimensão, causou muita dor”, recorda Janete.
Outro desafio identificado pelas participantes da pesquisa diz respeito ao uso de agrotóxicos por empresas do agronegócio no município. Sem nenhum vínculo com a vida no território, as empresas se estabelecem apenas com o intuito de explorar a terra, o que acaba destruindo a biodiversidade e contaminando a água que é utilizada pelas famílias da região. Janete considera que os fazendeiros são incapazes de se solidarizarem com a situação, pois não moram no local e não se preocupam se as atividades comerciais que desenvolvem têm consequências diretas no corpo e na mente das mulheres e famílias que vivem no território. “A mulher, mesmo quando está doente, tem que fazer todo o trabalho e depois ainda dar conta da casa, da família. E tem que deixar o seu corpo, a doença do seu corpo, por último, porque tem tantas outras coisas que a gente dá prioridade. Isso é um ponto que a gente identificou que foi comum”, completa Janete.
No entendimento da agricultora, ao cuidarem do território onde vivem, também estão cuidando do próprio corpo. Ela cita como exemplo o papel que as mulheres desempenham na agricultura, nos seus quintais e em suas lavouras, reforçando que para ter uma alimentação saudável – que é necessária para o corpo – o solo, a água e o território como um todo precisam ser cuidados e não podem estar contaminados.

Etnomapeamento
De Simonésia, na Zona da Mata de Minas Gerais, vem o relato da agricultora familiar Elisângela Rosa da Silva sobre outra metodologia de pesquisa participativa utilizada pelo projeto GENgiBRe, que se chama Etnomapeamento Feminista.
Elisângela integra o Coletivo de Mulheres do Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras na Agricultura Familiar de Simonésia (MG), que também participou do projeto. A agricultora conta que a atividade começou com ela caminhando com as pesquisadoras pela propriedade, narrando sobre sua rotina de trabalho na produção agroecológica e nos trabalhos de cuidado de sua família.
Enquanto conversavam, iam colhendo elementos para construir um mapa com informações da sociodiversidade, das rotinas de trabalho e dos tempos dedicados pelos homens e pelas mulheres em cada tarefa mapeada. “Tinha tanta coisa aqui em casa que eu nem tinha me dado conta que existia, porque é uma coisa tão rotineira: vou na horta, venho pra cozinha, trabalho com as galinhas, vou lá na roça, planto, colho… Eu nunca tinha parado pra pensar no trabalho que a gente faz, enquanto mulher, dentro da própria propriedade. Aí que eu fui percebendo que em tudo tem as mãos da gente”, diz Elisângela.

Para Roberta Cardoso, coordenadora do Centro de Tecnologias Alternativas da Zona da Mata (CTA-ZM), pesquisadora do projeto GENgiBRe e integrante do Grupo de Trabalho (GT) Mulheres, da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), o “Etnomapeamento Feminista” é uma metodologia muito transformadora, pois permite registrar e refletir sobre a relação que as agricultoras têm com a natureza, a partir do conhecimento das técnicas agrícolas e dos afetos estabelecidos com os espaços de trabalho e de convivência.
“A gente consegue levantar a sabedoria das agricultoras sobre a organização dos cultivos, a criação animal, o manejo do solo, das árvores, como elas usam os insumos agrícolas, como que elas produzem. Então tem uma visão ampla nessa perspectiva da agroecologia e da relação com o espaço”, declara Roberta.

A metodologia ainda permite identificar os fluxos econômicos que envolvem a troca de produtos, a doação e a comercialização, bem como o tempo de dedicação e a autonomia de decisão de cada integrante da família nos diversos espaços e trabalhos mapeados. “A gente compreende as estratégias de resistências das mulheres que são invisibilizadas; e compreende como que o trabalho cotidiano delas na agroecologia constrói essas resistências. Assim, conseguimos fortalecer esse trabalho e politizar essas ações que, muitas vezes, ficam invisíveis”, justifica Roberta.


Metodologias feministas
Corpo-Território e Etnomapeamento Feminista fazem parte de uma série de metodologias adotadas pelo projeto GENgiBRe nos últimos anos, com o intuito de aliar pesquisa – enquanto co-construção de conhecimentos – e ação transformadora. Além do coletivo de agricultoras agroecológicas do Vale do Ribeira (SP) e da Zona da Mata (MG), o projeto envolve instituições acadêmicas da França e do Brasil, como o Instituto de Pesquisa para o Desenvolvimento (IRD)/França, a Universidade Federal de Viçosa (UFV)/Brasil e a Universidade de Toulouse/França, e organizações brasileiras da sociedade civil (Centro de Tecnologias Alternativas da Zona da Mata e Sempreviva Organização Feminista). O principal financiador do projeto é a Agência Nacional de Pesquisa da França.
Conforme explica Isabelle Hillenkamp, pesquisadora e coordenadora do projeto GENgiBRE, tais metodologias partem dos acúmulos e posicionamentos dos movimentos feminista e agroecológico construídos ao longo de muitos anos. “Importante dizer que, nesse acúmulo dos estudos feministas, tem um trabalho enorme sendo feito há muitas décadas no Brasil sobre a politização das mulheres na agroecologia, no feminismo; e também sobre a questão da invisibilidade do trabalho de muitas mulheres. Isso relacionado ao debate teórico sobre a divisão sexual do trabalho”, interpreta Isabelle, que também é diretora de pesquisa no IRD, vinculado ao Centro de Estudos em Ciências Sociais sobre os Mundos Africanos, Americanos e Asiáticos (CESSMA), em Paris, França.
São diferentes metodologias que possuem escalas complementares de pesquisa, uma vez que investigam tanto os espaços de vida e trabalho das agricultoras – com foco nos manejos agroecológicos e agrícolas e na sua relação com as questões de gênero – quanto o território onde elas estão inseridas. Há ainda um aspecto importante aprofundado por essas pesquisas que se refere às disputas presentes nos territórios.
Isabelle diz que muitas regiões são atravessadas por tipos diferentes de conflitos socioambientais causados, por exemplo, por disputas em relação ao modelo de cultivo, ao extrativismo minerário, à instalação de usinas eólicas, ao modelo de conservação ambiental.
Mas de acordo com a pesquisadora, apesar de terem diferentes motivos, esses conflitos têm em comum o fato de colocar a relação com a natureza, a relação material, a relação subjetiva e a relação politizada no cerne das práticas nos territórios. “E é nesse contexto e com a bagagem do movimento e dos estudos feministas que nos perguntamos qual o sentido da agroecologia em territórios com esses conflitos, pensando, também, que a própria presença da agroecologia é o que constitui o conflito, porque sem resistência não há conflito na realidade”, ressalta.
Resistências nos territórios
Ao descrever a sua experiência como participante da pesquisa, Janete destaca que, diante das disputas identificadas, as metodologias reforçaram a percepção coletiva sobre a importância de lutar e agir a favor do território. Nesse sentido, ela argumenta que um dos caminhos necessários para garantir direitos fundamentais, como saúde e transporte público de qualidade, passa pela incidência nos espaços e processos de elaboração e implementação de políticas públicas municipais.
A agricultora avalia ainda que, se não agirem, ficarão, a cada dia que passa, mais reféns dos desejos das grandes empresas e terão ainda mais dificuldade para acessar a biodiversidade e uma alimentação de qualidade. “Eu consegui me identificar como pessoa nesse território, o meu corpo está aqui, e qual é a minha intenção, qual é a ação que eu estou fazendo, quem sou eu dentro do meu território, o que está acontecendo comigo, com a minha família e que possivelmente acontece e vai acontecer com o meu filho, com as minhas companheiras, com as minhas amigas quilombolas? Se nós ficarmos paradas, o nosso corpo pode ser limitado por uma sociedade que só pensa no dinheiro”, analisa Janete.
Em Simonésia (MG), Elisângela alerta que a mineração, os agrotóxicos e o milho transgênico representam uma ameaça para a agricultura familiar e a agroecologia na região. Como estratégia de resistência e de fortalecimento da luta pelo território, ela relata as ações para preservar as sementes crioulas que são desenvolvidas em parceria pelo Grupo de Mulheres, pelo Sindicato de Trabalhadoras e Trabalhadores Rurais e por organizações da agroecologia que atuam na região. As sementes crioulas e as mudas de plantas da agrobiodiversidade são distribuídas em espaços e eventos da agricultura familiar e são constantemente trocadas entre as famílias agricultoras.
Elisângela lembra que as mulheres são as principais responsáveis por conservar as sementes, utilizando as variedades crioulas no preparo de alimentos e cultivando nas lavouras e hortas no quintal. Os trabalhos com sementes crioulas representam também uma forma de enfrentar o machismo presente na sociedade e de lutar contra os abusos que sofrem enquanto mulheres e enquanto território. “Às vezes, tem mulheres que querem plantar uma semente crioula, mas, por causa do machismo, ela não consegue plantar dentro da propriedade dela. Mas ela guarda e leva para outra companheira plantar para preservar a semente”, afirma Elisângela.
Apagamento de saberes e relação com a ciência
Para Isabelle, outra questão importante que precisa ser reafirmada se refere ao reconhecimento dos saberes das mulheres agricultoras e das cientistas. Nos conflitos socioambientais, o que está sendo apagado pelo modelo agrícola dominante é a palavra das agricultoras, a relevância dos seus conhecimentos, e também as posições científicas que são dissonantes da concepção hegemônica que coloca o distanciamento da pesquisadora e do pesquisador como uma condição imprescindível para fazer ciência. “Pelo contrário, nós assumimos na pesquisa uma posição de proximidade, numa tentativa de estabelecer uma relação de confiança que não vai apagar nunca a distância social que existe entre pesquisadoras e agricultoras, mas que tenta ser um diálogo de saberes”, aponta Isabelle.
A pesquisadora constata que o trabalho de campo corresponde à tentativa de unir a pesquisa e a ação, de modo que a pesquisa contribua para uma ação transformadora, por meio da co-construção de conhecimentos, da educação popular e da elaboração de materiais de comunicação que sejam adequados a diferentes realidades e não sejam dirigidos apenas ao universo acadêmico.
“Assumimos que estar dentro de uma ação transformadora não é contraditório com o fazer ciência. Ser parte da transformação nos permite entender, desde dentro, com profundidade, as condições para essa transformação. E quando tomada com o rigor necessário, é uma posição não apenas legítima, mas também necessária de pesquisa”, conclui Isabelle.