
‘Memórias de um Caracol’, stop-motion indicado ao Oscar exalta a poética da imperfeição
Adam Elliot refina sua estética e emociona com uma animação que celebra a delicadeza das pequenas vitórias
Tem filme que não termina quando acaba. Taí uma frase que pipoca na minha mente sempre que vejo um trabalho do animador Adam Elliot.
Existe um lugar, uma linha tênue e constante em suas histórias — entre o grotesco e o terno — que permanece reverberando por dias. Não falo de grandes revelações ou choques narrativos, mas, sim, de singelas provocações de zonas delicadas da existência humana.
Elliot ganhou destaque em 2003, quando venceu o Oscar de Melhor Curta-Metragem de Animação com o excelente “Harvie Krumpet”. Em 2009, ganhou diversos prêmios com o tocante “Mary e Max”. Agora, com “Memórias de um Caracol”, indicado ao Oscar de 2025, ele reafirma sua assinatura estética: animações esculpidas pacientemente em massinha de modelar, quadro a quadro, que são tudo, menos infantis.
A riqueza de detalhes é espetacular, mas o que realmente brilha é a densidade emocional. Elliot soma forma e conteúdo de maneira rara: ele usa sua técnica a serviço da fragilidade de suas personagens, que são estranhas, excêntricas, emocionalmente fraturadas, psicologicamente instáveis, socialmente desalinhadas, humanas.
Em “Memórias de um Caracol”, acompanhamos a trajetória de Grace Pudel, órfã, introvertida, tomada por crises de ansiedade e agorafobia, e seu irmão gêmeo, Gilbert Pudel, expansivo, rebelde, igualmente traumatizado. Após a morte do pai, os caminhos dos dois se bifurcam, mas a ligação entre eles permanece como uma espécie de fio condutor emocional da narrativa.
A história é construída de forma em que a sutileza não se concentra nas redenções grandiosas, mas, sim, na possibilidade de crescimento apesar do ambiente, apesar da dor, apesar do passado, apesar dos pesares. É aí que o filme começa a desenhar, com leveza e precisão, a metáfora central: a coragem e resistência necessárias para a vida.
Elliot propõe um tipo de heroísmo pouco celebrado: o das pequenas vitórias. Em um mundo que exige pressa, performance e superação constante, o filme celebra os gestos mínimos: levantar da cama, escrever uma carta, segurar a mão de alguém, adotar um caracol.
A resistência é cotidiana, íntima. É na ousadia desses microgestos diários que as personagens constroem um mundo para habitar; através de movimentos nem sempre perceptíveis, mas absolutamente revolucionários.
E o tempo do filme respeita esse compasso interno. Não se curva à estrutura clássica de começo, meio e fim em ritmo direcional, linear; pelo contrário, permite repetições, pausas, recomeços, reforçando, assim, a horizontalidade da humanidade e de suas relações, ao passo em que estamos todos, cada um a sua maneira, simplesmente tentando não só sobreviver, mas viver também. E viver não é ignorar as feridas. É aprender a caminhar com elas, igual, talvez, ao kintsugi — técnica japonesa que cola cerâmicas quebradas com ouro, celebrando e ostentando as rachaduras como parte de sua história.
Por fim, “Memórias de um Caracol” é um tratado sensível sobre a coragem de continuar. Sobre como seguir em frente não significa apagar as dores, o passado, mas caminhar com tudo, devagar. Grace mostra que viver pode ser, muitas vezes, um exercício de resistência. E resistir não é apenas suportar a vida, mas, sim, torná-la bela mesmo quando ela é dura, obscura, limitada (parafraseando Nietzsche com a maior licença poética possível). É transformar o que nos quebra(ou) em parte daquilo que nos afirma. Nesse sentido, Adam Elliot segue aprimorando o que sabe fazer de melhor: esculpir a humanidade. Desta vez, ele propõe que as rachaduras, quando acolhidas com ternura, podem brilhar como ouro. Filme para ver, rever e indicar para os coleguinhas.