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‘Memórias de um Caracol’: A concha como resguardo de uma identidade
Filme retrata a solidão e os infortúnios de uma vida comum que reencontra sua identidade saindo do próprio refúgio.
Por Nicoly Modesto
A concha de um caracol serve como proteção para seu corpo vulnerável. Quando ele se sente ameaçado, se fecha para dentro dela. ‘Memórias de um Caracol’ mostra de forma divertida e emocionante como esses perigos podem se tornar um bloqueio, impedindo de continuar a própria vida e sonhos.
O filme, indicado ao Oscar de Melhor Animação, é uma história baseada nas memórias de Grace Pudel (Sarah Snook). Ela cresce em uma família marcada por tragédias apesar de estar sempre unida, com destaque para a relação com o seu irmão gêmeo Gilbert (Kodi Smith-McPhee). Apesar de diferentes, são “apenas um coração”. Como mostrado no filme, Gilbert sempre foi escudo e conforto de Grace.
Com a morte do pai Percy (Dominique Pinon), os gêmeos são obrigados a se separarem em famílias e vidas completamente diferentes na Austrália. A partir desse momento, Grace narra suas histórias para Sylvia, uma dos seus caracóis de estimação que a protagonista tem como uma das poucas lembranças de sua vida, passando por momentos traumáticos e de esperança.
O diretor australiano Adam Elliot volta após um longo hiato de 15 anos com o seu estilo de animação inconfundível. O Claymation é uma vertente do stop motion com personagens e cenários feitos de massa de modelar. Tal técnica, junto com as cores utilizadas, apresentam imperfeições e a essência dos personagens, garantindo mais simbolismo à história.
Elliot ganhou em 2004 Oscar com o curta-metragem Harvie Krumpet, mas foi em 2009 que o cineasta se destacou graças ao filme ‘Mary e Max – Uma Amizade Diferente’ que possui uma estética e narrativa semelhantes. Personagens que não se encaixam em padrões sociais e com personalidades complexas.
Além de retratar as cartas e uma amizade distante, em ‘Memórias de um Caracol’ as perdas e traumas são mascaradas nas válvulas de escape criadas pelos irmãos que encontram nelas os motivos para continuarem vivos, mas que ainda os fecham para o mundo real.
Enquanto Grace cultiva seu amor hereditário por livros e caracóis, ela vai se tornando cada vez mais vulnerável e sozinha em seu próprio mundo, cercada de barreiras construídas por ela mesma e por seu passado. Já Gilbert, que sempre teve uma adoração pelo fogo e inspiração na antiga profissão do pai, vai tendo seu brilho apagado graças a sua nova família fanática-religiosa que o explora.
Pinky é uma personagem que aparece como uma ponta de esperança na vida da protagonista, se tornando mentora e melhor amiga de Grace. A personagem viu a velha senhorita dar o seu último suspiro. Sendo completamente o oposto da garota, Pinky acolhe Grace e ajuda a enxergar um outro mundo fora da sua concha.
‘Memórias de um Caracol’ é um filme que, apesar de complexo, se mostra divertido e próximo ao seu público, retratando uma vida comum, com reviravoltas surpreendentes em um final feliz. O filme reflete como podemos enfrentar nossos traumas de diversas maneiras, seja realizando um curta-metragem com ele ou até mesmo fazendo truques com fogo.
A vida só pode ser entendida olhando para trás, mas só podemos vivê-la andando para frente. A mensagem final reflete como podemos manter nossas vidas e aprender com experiências boas ou ruins sem parar no lugar. O importante é manter a esperança mesmo que em outra pessoa ou em um reencontro. Grace nunca deixou de amar seus caracóis e seu irmão, pois isso faz parte de sua identidade e a mantém viva.
‘Memórias de um Caracol” marcou presença na 48° Mostra Internacional de Cinema de São Paulo em outubro de 2024. Até o momento não está disponível em nenhuma plataforma digital.
Texto produzido em colaboração a partir da Comunidade Cine NINJA. Seu conteúdo não expressa, necessariamente, a opinião oficial da Cine NINJA ou Mídia NINJA.