Memória, verdade e justiça
Na madrugada do dia 31 de março para 1 de abril, Marighella não precisou ver os tanques de guerra invadindo a cidade do Rio de Janeiro para saber que o Golpe era iminente.
Por Maria Marighella
Na madrugada do dia 31 de março para 1º de abril, Marighella não precisou ver os tanques de guerra invadindo a cidade do Rio de Janeiro para saber que o Golpe era iminente. Dirigente comunista desde os anos 30, era um dos poucos a ter nitidez do cerco que chegava ao Brasil. Meu pai, Carlinhos, desde o início daquele 1964, já estava matriculado num semi internato, pelo pai, como prova daquela certeza. Ele dizia: se algo me acontecer, você volta para o Colégio.
E foi assim. Estava certo. Com as tensões crescentes que marcaram aquele dia, Marighella, ao lado de sua companheira Clara Charf, arrumou rapidamente uma sacola e desceu às pressas as escadas do seu apartamento enquanto a polícia subia pelo elevador e entrou pela última vez na clandestinidade que durou até o seu brutal assassinato em 1969.
Eu não era nascida e nem precisava para ser atravessada irremediavelmente por este episódio. Não é preciso estar na cena para ser parte dela. Assim, em alguma parte mais ou menos viva da memória coletiva, está o Brasil, marcado irremediavelmente pelo golpe civil-militar de 1964. Militar porque seriam eles a instaurar o regime político autoritário, com perseguição política e moral, cassação de direitos, censura, suspensão de direitos civis e políticos, institucionalização da tortura, execução e ocultação de cadáveres de opositores. Civil, porque teve ampla participação de setores tanto das elites quanto conservadores da sociedade brasileira, como empresários, banqueiros, imprensa empresarial, políticos e setores das igrejas. Um regime autoritário não se sustentaria por 21 anos sem este tipo de apoio.
Esta descrição evidencia que o passado da ditadura não passou, é uma radiografia do presente impressa nos discursos de ódio e negacionistas, na censura, na tentativa de criminalizar e sufocar os movimentos sociais, na recusa de dialogar com a sociedade civil, na inação criminosa frente à tragédia da pandemia. Está impressa em práticas de execução de ativistas de direitos humanos e ambientais, está na prática de extermínio da população negra e periférica.
Quando não há uma revisão radical do passado da ditadura, quando não completamos a nossa justiça de transição, o entulho autoritário permanece nas leis, nas instituições, na naturalização da cultura da violência. Quando as violações de direitos humanos do passado, e do presente, não são reveladas em sua inteireza e seus perpetradores não são denunciados e julgados, a sombra do autoritarismo e da impunidade nos açoita cotidianamente. Somos obrigados a ver o bombardeio de informações indistintas confundindo e entorpecendo a população, a glorificação de torturadores e de datas que deveriam nos envergonhar, o ataque à Constituição, a violência armada naturalizada, os direitos humanos desmontados, a ciência e a liberdade de expressão atacadas.
É através da Memória, Verdade e Justiça que podemos refazer o pacto social. Os novos tempos nos convocam a fazer a defesa radical da democracia e de nossa Constituição Cidadã, construída num amplo debate social, com participação. Hoje, as constantes aspirações golpistas do governo Bolsonaro, que incita o caos e a instabilidade social, não são mais que essa sombra a nos perseguir. Liguemos a luz da democracia.
Esse artigo foi publicado originalmente em 1º de abril de 2021. Nesse ano, quando se completam 60 anos do golpe civil-militar no Brasil, republicamos como um dos relatos das inúmeras vidas atravessadas por aqueles duros e violentos anos.
Maria Marighella é atriz, diretora, gestora cultural, presidenta da Funarte, vereadora licenciada em Salvador e neta do líder político Carlos Marighella.