Por Leiliane Rebouças*

A história de Brasília apresentada ao longo do tempo tem uma única versão: “oficial”, paga e retratada pelo Estado sob a perspectiva da ideologia desenvolvimentista. Essa versão única ocultou outros olhares, como o das pessoas comuns, os candangos que participaram da construção da nova capital.

A história oficial de Brasília sempre privilegiou mais a arquitetura e o urbanismo; e as figuras de JK, Lucio Costa e Oscar Niemeyer, ou seja, o presidente que decidiu construí-la e os gênios que projetaram a sua arquitetura e seu traçado urbanístico.

A cidade sempre foi retratada como se tivesse surgido em um passe de mágica, sem que fossem levadas em consideração as ocupações que já existiam no território (as antigas fazendas e cidades como Planaltina – o antigo arraial de Mestre D’Armas), e sem que mostrassem as precárias condições de vida dos trabalhadores na época da sua construção.

Foto: Reprodução

Após a inauguração de Brasília, milhares de operários ficaram desempregados e constataram que não existia um lugar para eles na cidade que construíram. Os acampamentos temporários das empreiteiras foram sendo demolidos pouco a pouco e uma imensa leva de trabalhadores que veio para a nova capital em busca de melhores condições de vida se viu sem ter onde morar. Muitos candangos vieram de cidades pequenas sem oportunidades de trabalho ou fugiram da seca que assolava o Nordeste.

Durante a construção do Plano Piloto de Brasília, esses candangos foram comparados aos bandeirantes e tiveram seu heroísmo destacado nos discursos oficiais. Inaugurada a cidade, eles foram tratados como um incômodo urbanístico, como invasores da cidade planejada. E, não tiveram reconhecimento. Pois, reconhecer sua importância na história de Brasília também implicava em ter que reconhecer os seus direitos por terem pertencido àquele projeto de cidade no final dos anos 1950.

Entre as centenas de acampamentos das construtoras que erigiram Brasília, restaram cinco deles, que resistiram ao tempo e às mudanças que ocorreram na nova capital. Esses acampamentos sobrevieram graças a resistência dos seus moradores, pioneiros e filhos de pioneiros. A Vila Planalto está localizada na área mais nobre do Plano Piloto: entre o Palácio dos Três Poderes e o Palácio da Alvorada. Ela surgiu em 3 de abril de 1957, quando foram instalados os dois primeiros acampamentos das construtoras que construíram, respectivamente, o Palácio da Alvorada e o Brasília Palace Hotel. A Vila leva o nome da construtora Planalto, nome fantasia da Raymond Concret Pile, construtora americana responsável pela estrutura metálica dos ministérios e da barragem do Lago Paranoá.

Foto: Reprodução

Os moradores da vila resistiram às tentativas de remoção durante os 30 anos de ditadura militar e, quando o país iniciou a redemocratização, a comunidade se organizou e lutou pelo direito de permanecer com seus filhos na cidade que construíram, naquele lugar onde foram testemunhas oculares da história de Brasília e do Brasil.

E foi graças ao protagonismo feminino de um grupo de dez mulheres que os moradores foram fixados, a contragosto da especulação imobiliária que queria ver ali construídos hotéis e prédios para a elite.

Em 21 de abril de 1988, a Vila Planalto – que é remanescente dos acampamentos operários da construção da capital do Brasil – foi tombada Patrimônio Histórico do Distrito Federal. Apesar do tombamento, passados 35 anos, até hoje a história dos candangos da Vila Planalto é silenciada na história oficial de Brasília. E o Estado se omitiu na preservação dos seus espaços de memória. As últimas casas de madeira, que são registro da memória da construção de Brasília, que ainda permanecem de pé, estão em estado avançado de arruinamento e sem qualquer previsão de restauração por parte da Secretaria de Cultura e Economia Criativa do DF.

A história de resistência dos moradores da Vila Planalto foi narrada no livro “Vizinhos do Poder: História e Memória da Vila Planalto”, que dá voz aos candangos da Vila Planalto que construíram Brasília e cujos testemunhos não foram registrados pelos arquivos públicos e nem constam nos livros de História.

Foto: Reprodução

A Vila Planalto, tão próxima do poder e frequentada por autoridades da Esplanada dos Ministérios por existirem ali muitos restaurantes, é muito mais do que apenas um centro gastrônomico, ela é a história viva de Brasília, onde nasceu o Plano Piloto de Lucio Costa e, sobretudo, um exemplo do protagonismo feminino na luta por direitos humanos no Brasil.

* Leiliane Rebouças é internacionalista e escritora, líder comunitária da Vila Planalto e Coordenadora do Movimento Guardiões de Brasília Patrimônio da Humanidade.