Medida Provisória: um filme pra quem?
Confira, por Igor Travassos, análise do filme que estreia essa semana nos cinemas
Por Igor Travassos
Recife, noite de segunda-feira, Cinema São Luiz lotado de gente, das filas que dão volta no quarteirão, mais os encontros e abraços num “novo normal”. Pré-estreia do filme “Medida Provisória”, do ator, escritor, produtor, diretor – e tantas outras coisas as quais ele pode ser – Lázaro Ramos. Confesso não me recordar de ver o cinema assim tão cheio para o filme de um realizador negro. Acrescentando ainda mais um detalhe: com um público de maioria negra.
O Cinema São Luiz, em plena Rua da Aurora, com seus 70 anos, localizado no centro do Recife, tem mil lugares, e certamente foi a sessão de pré-estreia deste filme com maior público. A megalomania pernambucana é só para negritar o fato de que o cinema estava lotado de gente preta. Talvez pelo Lázaro, talvez pelo Alfred, talvez pelo filme, mas o feito foi realizado.
Baseada na peça teatral “Namíbia, não!”, de Aldri Anunciação, o filme traz como premissa a instauração de uma medida provisória para reparar os danos cometidos contra a população negra brasileira pelos 400 anos de escravização e os efeitos posteriores à abolição. A MP 1888, decretada no dia 13 de maio (um paralelo explícito à Lei Áurea, assinada pela Princesa Isabel em 13 de maio de 1888) ordena a devolução imediata de negros e negras para o continente africano. Com isso, o filme traz inúmeros temas como democracia racial, colorismo, racismo institucional e estrutural.
O filme, tal qual a distribuição tem afirmado, é uma mistura de drama, comédia, suspense e ação. Prefiro a definição de que é cinema negro brasileiro, feito a partir de uma outra lógica, mas se adequando ao sistema comercial a fim de alcançar outros públicos.
Talvez a escolha de Alfred Enoch se reforce no star system (conceito utilizado para definir filmes que são alavancados por um nome forte no mercado), uma vez que no roteiro não se justifica a necessidade de um estrangeiro (meio brasileiro) para o papel. Certamente o ator da franquia Harry Potter e da série How to Get Away With Murder nos surpreende pela atuação e pela proficiência na língua portuguesa. Surpreende também pela dinâmica adotada entre Antônio, seu personagem, e Capitú, interpretado por Tais Araújo, estrelando uma das cenas mais bonitas de afeto entre corpos negros no cinema nacional. Isso porque num cinema marcado pela hipersexualização e objetificação dos homens negros e mulheres negras, que enquadra genitálias e destaca sexos baseados a suor e insaciáveis performances sexuais, uma cena que destaca olhares, lábios, mãos enquanto os dois dançam num tempo de cena deles, sem pressa, é uma primazia.
Ambos os personagens, localizados numa classe média carioca, de um ano futuro, trazem a defesa de que, independente do lugar de acesso que você tem (ela médica e ele advogado), tendo a pele mais escura, o racismo sempre lhe alcançará.
Para críticos de cinema, um filme dentro do que seria considerado comum para o circuito comercial, contudo, sem exageros, sem recursos mirabolantes que deslocam o público da narrativa, e isso certamente é um ponto positivo. Para os intelectuais, pesquisadores e ativistas do movimento negro, talvez falte algo. O filme ainda aborda democracia racial e colorismo sem aprofundar nas questões caras ao movimento negro atualmente, no entanto, qual o objetivo do filme? A quem ele se destina? Com quem ele se comunica? Essas são questões fundamentais para se entender os lugares em que esse filme precisa estar e no papel que ele tem a exercer em abrir campos de discussão e debate em torno do racismo ainda longe de ser superado no Brasil de hoje.
Para a militância, e me coloco nesse lugar, cabe a identificação com o personagem André, interpretado por Seu Jorge, que já leva com deboche alguns questionamentos da branquitude. Para além das pinceladas de humor, André incorpora o silenciamento que nos é imposto sistematicamente. E seu jeito “folgado” nada mais é do que o desejo de existir, mesmo na adversidade. Em relação direta ao espetáculo teatral e também ao filósofo Frantz Fanon, André se pinta de branco.
Num ensaio à liberdade vivida pela branquitude, é num banho que retira a tinta de seu corpo, que ele sente no corpo a analogia ao prazer da dignidade. No entanto, a realidade o encontra, aprisiona e o mata.
André é um comunicador, denuncia o racismo. André é Exu, o orixá da comunicação, dos caminhos, que leva a causa ao mundo até quando é vítima de um racista armado e que, sem saber, viraliza a humanidade. É também o Exu da rua, aquele das artimanhas, da malandragem, que tem o sorriso marcado apesar das adversidades e da perversidade da vida. E Exu não morre. A prova disso são as imagens e créditos finais, reenergizando a luta fora do lugar da ficção, lembrando que a ficção não imita a realidade, mas traz à tona aquilo que nos é sentido na pele.
É engraçado que o filme traga uma outra realidade: a linguística. No filme, o termo “negro/a”, quando atribuído às pessoas, é substituído pela palavra “melaninado/a” e pela expressão “melanina acentuada”, numa tentativa de seguir um politicamente correto que não nos cabe, de dizimar nossa existência a partir de um novo pacto linguístico que provavelmente não foi, ficcionalmente, dialogado conosco – negros e negras. Lembro que o Brasil passou há pouco tempo por situação semelhante ao tentar incorporar de toda forma a palavra afrodescendente no vocabulário. Lembro do constrangimento que as pessoas ficavam em tentar “acertar” a palavra socialmente aceita.
Talvez o único ponto que cause bastante desconforto a quem está no front da luta antirracista, sobretudo aos negros e negras, é um jogo de montagem que simula uma simetria entre a morte de dois personagens (um branco e um negro), que o diretor diz não se tratar das mesmas circunstâncias, pois um é vítima do sistema e o outro é vítima de si mesmo e das escolhas tardias que fez, mas, como autoria também é escolha, isso não fica posto, sugerindo assim que o personagem branco foi assassinado por negros tanto quanto o negro que foi assassinado por brancos, não evidenciando assim a justificativa lançada por Lázaro em debate. Mas, para quem nunca teve um referencial de filme brasileiro que não fosse violento com pessoas negras, Medida Provisória está longe disso, possibilitando um outro olhar para nós e para os nossos.
Medida Provisória é também uma resposta para quem nos coloca como raivosos a partir de uma reação diante de situações que nos violentam diariamente. Sempre faço uma pergunta: o que esperar de alguém que vive na mira esperando o gatilho ser puxado? Um abraço e um beijo? Que um, dois ou três tapas não calem as nossas vozes, sobretudo com quem nos violenta por racismo ou pela reprodução do sistema (um salve ao Will Smith!).
Dito isso, o filme consegue reforçar que negro, negra, preto, preta, afrodescendente, melaninado, melaninada ou melanina acentuada, ou qualquer termo utilizado para inviabilizar e nos demarcar, não será capaz de retirar de nós a capacidade de se reconhecer no outro a partir da nossa identidade, e, por conseguinte, a nossa capacidade de se aquilombar, seja qual tempo for, mesmo que o termo quilombo seja muito século 17 e, no futuro, os carnavais que nos abriguem sejam os afrobunkers. Continuaremos vivos, vivas e vivendo!
Medida Provisória, de Lázaro Ramos, estreia no dia 14 de abril nos cinemas do Brasil, mas precisa mesmo é ser exibido e todas as salas de aula do país, enquanto ainda há tempo.
Igor Travassos é realizador e roteirista audiovisual, comunicador, integra a Articulação Negra de Pernambuco e a Coalizão Negra por Direitos.