Medida Provisória, de Lázaro Ramos: o cinema negro resiste
Thriller político nos convida a questionar a discussão de raça e gênero em um Brasil forjado no mito da democracia racial. Leia análise de Mônica Francisco.
Vivemos em um tempo difícil que exige coragem para desafiá-lo e para traduzir em uma narrativa o que muitos de nós, negros, sufocamos na garganta. É o que faz Lázaro Ramos em “Medida Provisória”, filme de estreia do ator na direção de longa-metragem. No thriller político, ele nos convida a questionar a discussão de raça e gênero em um Brasil forjado no mito da democracia racial.
“Medida Provisória” é imperdível não só pela temática – e, desde já, proponho a todos que procurem o cinema mais próximo para assisti-lo ainda nesta semana. Ele se consagra como um filme importante no tempo histórico em que vivemos. Abre um caminho sem volta, para que narrativas sobre pessoas negras sejam contadas e dirigidas por elas mesmas. Como o próprio diretor nos convida a pensar, a utopia é um objetivo a ser alcançado e o sonho, a nossa ferramenta.
A narrativa flui num futuro distópico, quando o governo decreta uma ordem que obriga todas as pessoas com traços afrodescendentes a voltarem para a África, como uma forma distorcida de reparação histórica pelo período da escravidão. Com roteiro de Lázaro Ramos e Lusa Silvestre, o filme é uma adaptação da peça “Namíbia, não!”, de Aldri Anunciação, dirigida por Lázaro em 2011.
Atento às contradições do que é ser negro no Brasil, o diretor aborda temas como colorismo, afrocentrismo e o extermínio da população preta, mas não só isso. O filme convoca o espectador a refletir sobre o papel de cada um, numa sociedade colonialista, que atravessa o tempo perpetuando a violência.
A deportação para a África pode ser lida como uma manifestação da colonialidade, que estende a experiência do passado colonial até os dias de hoje, por meio da manutenção de estruturas de dominação e controle social. Sem dúvida, incursões autoritárias, ainda nos dias de hoje, alimentam a memória da dor e da violência e favorecem sistemas distópicos. O que fica claro é que precisamos retomar uma consciência coletiva que anda adormecida, um despertar cívico, que poderá garantir um tempo de existência mais saudável e justo para as sociedades.
Afinal, se a luta antirracista é de todos, o que mais está faltando para que o senso de consciência coletiva se desperte? E aqui, mais uma vez, não me refiro apenas à comunidade negra exercendo políticas e práticas antirracistas. Queremos saber quem é aliado nesse caminho de retomada e redistribuição de poderes, quem, realmente, renuncia aos privilégios.
Taís Araújo, no papel de Capitu, – nome da célebre personagem de Machado de Assis, um escritor negro, diga-se de passagem – representa a mulher negra, independente e livre para fazer suas escolhas, que luta pelo direito de viver a sua vida como bem entender e quiser. Seu Jorge vive o jornalista André e garante uma boa dose de humor sarcástico. Já Antônio, interpretado por Alfred Enoch, é o advogado que acredita na Justiça e luta pelos direitos da população negra por vias institucionais.
O cinema negro resiste neste país. Como dizia o saudoso ator e cineasta Zózimo Bulbul, uma referência da cinematografia afro-brasileira nas décadas de 1960 e 1970, a câmera é uma arma poderosa. “Medida Provisória” nos mostra que estamos sabendo usá-la. Com o filme, imaginamos que é possível retomar os rumos que queremos para as nossas histórias e o nosso povo negro. Sejamos antirracistas na prática: todos nos cinemas na primeira semana de estreia do filme e boa sessão para vocês!
*Mônica Francisco é deputada estadual pelo PSOL-RJ. Nascida no Morro do Borel, favela da Zona Norte do Rio, ela luta pela defesa dos direitos humanos há mais de 30 anos.