Por Hyader Epaminondas

Como filme de abertura do Festival Mix Brasil, “Me Ame Com Ternura”, de Anna Cazenave Cambet, propõe um labirinto moral no qual o tempo se converte em arquitetura emocional não apenas cronológica, mas um mecanismo punitivo fluido, impreciso e, por vezes, cruel. A ampulheta passa a ser, no filme, dispositivo narrativo e ético onde cada grão que cai marca um recuo, um silêncio, uma injustiça acumulada.

Diferente de um uso meramente metafórico, esse tempo “que pune” organiza os cortes, os elipses e os planos fixos, ele cria uma pressão gradual, uma sensação de progressiva inexorabilidade, como se a protagonista estivesse vivendo dentro de um relógio que dita sua perda de autonomia.

No centro está Clémence, personagem que encarna a colisão entre desejo e dever no seio da família patriarcal através da atuação de Vicky Krieps. A decisão de ser honesta sobre suas experiências afetivas com outras mulheres não é, no filme, um ato exótico ou performático: é um gesto de integridade que choca uma ordem social que ainda mede valor por conformidade.

A reação do ex-marido, que instrumentaliza o aparato jurídico para punir e controlar, revela como instituições supostamente neutras seguem atravessadas por vieses patriarcais. A lei deixa de ser mediadora e passa a funcionar como prolongamento do corpo social misógino. A disputa pela guarda não é apenas um conflito íntimo, mas um litígio público sobre quem detém o poder de definir o que conta como “legítimo”. O tribunal, no filme, se converte em palco onde a justiça performa sua lealdade histórica, mais disposta a preservar a autoridade masculina do que a escutar afetos que escapam da norma.

Esse gesto institucional encontra um eco direto no cenário brasileiro recente, especialmente após a aprovação da PDL 3/2025, que susta as diretrizes de acesso ao aborto para crianças e adolescentes vítimas de violência sexual. Trata-se de um movimento legal que, sob o pretexto de neutralidade, reafirma hierarquias morais e patriarcais. A legislação deixa de proteger as vítimas para proteger o imaginário conservador sobre família e sexualidade. O filme e o país se tocam neste ponto: quando a lei escolhe proteger estruturas e não pessoas, ela revela de que lado da história está.

O Peso das Leis no Corpo Feminino

A dor de Clémence se manifesta menos em explosões e mais em gestos contidos: nos silêncios pragmáticos, na escrita autobiográfica que tenta organizar o caos e nas invasões constantes de sua intimidade por aqueles que se dizem movidos por amor. Esses momentos, tão cotidianos quanto devastadores, se tornam emblemas de uma opressão normalizada; não é apenas o ex-marido que a sufoca, mas todo um ecossistema material e simbólico que a circunscreve.

Quando a câmera se espreita diante da janela, enquadrando Clémence isolada num espaço entre o dentro e o fora, o que se vê não é apenas solidão, mas o reflexo fragmentado de uma identidade aprisionada. O lar, tradicional refúgio, se converte em armadilha e tribunal moral, onde cada gesto é observado e julgado. Essa relação entre o micro (o corpo como objeto e o quarto) e o macro (o sistema social que o sustenta) é uma das maiores virtudes do filme: a política emerge do banal, nas frestas da vida comum, onde o poder se disfarça de rotina.

A direção de atores, aqui, busca contornos contidos; o sofrimento não explode em histeria, antes se instala em pequenas fissuras. Essa economia de expressão permite que a narrativa verbalize menos e sugira mais: a ausência fala alto. Felizmente, a personagem principal mantém um núcleo de humanidade que impede que o filme se transforme em mera demonstração estilística: a performance equilibra o retraimento da personagem frente às adversidades, fazendo com que cada pequeno ato de Clémence tenha peso simbólico.

O filme também convida a pensar a maternidade em termos plurais. Clémence é obrigada a repensar o que significa amar, não apenas como um vínculo biológico, mas como conjunto de práticas, responsabilidades e escolhas que se articulam com desejo e autonomia.

A crítica social que Cambet faz é eficaz porque humaniza o conflito estrutural sem romantizar em momento algum todo o processo jurídico. Em vez de discursos inflamados, o filme entrega cenas onde a injustiça é banal e, por isso, mais chocante. A narrativa legal serve de espelho: os procedimentos jurídicos não aparecem como solução, aparecem como instrumento que reproduz violências de gênero. Essa leitura permite a realização de um paralelo inquietante entre direito e moralidade: o que o sistema legal normaliza, a sociedade naturaliza.

A câmera, muitas vezes estática, cria um senso de observação implacável; o som privilegia ruídos abafados, emulando o som imerso no fundo de uma piscina, que funcionam como marcador de presença e ausência; a paleta cromática tende a saturações contidas que reforçam o tom de memória e desgaste, para projetar a tensão que atravessa a protagonista.

Há uma potência política explícita no modo como o filme se insere no Festival Mix Brasil. Exibido como abertura do maior festival de diversidade cultural da América Latina, “Me Ame Com Ternura” estabelece diálogo claro com a pauta do evento: reivindicar legitimidade para corpos e afetos marginalizados. O filme não se limita a representar, insiste em mostrar as consequências práticas das escolhas afetivas dentro de um mundo que ainda pune pessoas que ousam viver sua verdade.

O drama de Cazenave é um estudo político do íntimo: estrutura-se como uma denúncia sutil e persistente das engrenagens que transformam desejos em crimes sociais. Sua força está na precisão formal e na coragem de expor como normas legais e morais confluem para sancionar a perda de autonomia feminina.