‘MBL quis se promover’ afirma Sandro Ka, um dos artistas censurados na mostra Queer
Após pressão do MBL – Movimento Brasil Livre – e de outras páginas de cunho religioso e conservador, a mostra Queermuseu – Cartografias da Diferença na Arte Brasileira foi sumariamente cancelada pelo Banco Santander em Porto Alegre. A atitude da instituição, considerada arbitrária e de cunho fascista por artistas e milhares de pessoas nas redes […]
Após pressão do MBL – Movimento Brasil Livre – e de outras páginas de cunho religioso e conservador, a mostra Queermuseu – Cartografias da Diferença na Arte Brasileira foi sumariamente cancelada pelo Banco Santander em Porto Alegre. A atitude da instituição, considerada arbitrária e de cunho fascista por artistas e milhares de pessoas nas redes sociais, foi rechaçada pela opinião pública no Brasil e em diversas publicações especializadas pelo mundo.
Para melhor compreender a questão, a Mídia NINJA entrevistou Sandro Ka, um dos artistas expositores da mostra que possui trajetória em diversas exposições com as temáticas da imaginação infantil, da religiosidade e uso de ícones da historiografia, da arte e da cultura pop. Sandro comenta sobre seu trabalho, o ataque do MBL e a postura do Santander Cultural. O caso talvez possa se resumir no título de sua exposição solo, ainda em cartaz no Museu de Arte do Rio Grande do Sul : “Tanto barulho pra nada”.
Mídia NINJA: Quais os conceito das suas obras na exposição censurada?
Sandro Ka: Tenho três obras expostas, que trazem questões atravessadas pela sexualidade, papéis sexuais, poderes, hierarquias, identidades. São esculturas, elaboradas a partir da associação de objetos cotidianos bem próximos da nossa realidade e da vida cotidiana. Elementos aparentemente simples mas carregados de sentido, e que agrupados são ressignificados e refletem outros questionamentos.
Uma das obras trata do reconhecimento. Tem a ver com a questão de identidade, de espelhamento, de se ver no outro e se questionar a partir desse espelho. São dois viadinhos se olhando, um de porcelana e um de borracha, um bambi.
A outra se chama “Desperto”, que são dois viadinhos de porcelana, numa situação bem familiar e amorosa, uma composição bem suave, que tem uma doçura.
A terceira, “O Peso das Coisas”, um viado de porcelana de cabeça baixa e ao lado dele, nas costas, com um olhar de superioridade, um busto de Jesus Cristo com uma relação de poder, marcada por esse posicionamento. Quem tá em cima, quem tá embaixo, quem dá a ordem, quem obedece, como as coisas se organizam em determinados contextos.
Esses trabalhos falam um pouco de identidade, questão de religião, papel social, identidades sexuais também, mas de forma bastante aberta.
MN: Qual foi a sua primeira reação quando recebeu a notícia do fechamento da exposição antes do tempo?
Sandro Ka: Fiquei bastante perplexo. Não imaginava que uma instituição cultural de grande relevância pudesse se fragilizar com uma postura dessa. Os ataques foram muito vagos e equivocados, baseados em entendimentos muito rasos sobre arte e foram muito mal intencionados, sem nenhum interesse ou preocupação com os valores que estavam sendo afetados ali. Vimos a postura de um grupo de extrema direita tirar proveito da situação e se mostrar, em vez de discutir de fato as questões que são importantes pra sociedade.
Isso implicou uma onda de ódio, com ataques bem pesados, que foi bastante triste, porque mobilizou um senso comum de um público que não se colocou à disposição de visitar a exposição, conhecer, entender e se abrir pro novo. É bem curioso, porque certamente a maioria das pessoas que criticaram a exposição sequer colocaram os pés naquele espaço pra ver o que era. Alguns aspectos que foram mencionados nem se tratavam da obra como um todo, pegaram fragmentos descontextualizados das obras com provocações baixas e muito rasas.
MN: O confronto do MBL e outros setores conservadores e a censura do Santander à exposição tomou grande proporção nas redes. O que já se pode concluir desse episódio?
Sandro Ka: O cenário das artes visuais no Rio Grande do Sul e no Brasil tem virado motivo de chacota, de piada. Isso é muito triste. Reflete um espírito ainda muito provinciano, que não está de acordo com as ideias que motivaram essa exposição, com o espaço e visibilidade que estava sendo dado para ideias, artistas e linguagens interessantes, ousadas, inovadoras. Embora o tema queer em exposições de arte ou dentro de pesquisas poéticas visuais não seja uma grande novidade. Mas aquele espaço era legítimo, sabe? Ocupar o Santander Cultural com uma temática tão importante como essa foi uma ousadia da instituição e nesse recuo, nessa censura, a gente perde muito. São muitos passos pra trás que a gente está dando.
MN: Todo o episódio evidenciou algo já conhecido no debate sobre a relação entre a cultura e a iniciativa privada que é o contraponto entre o mecenato e o marketing. Você acredita que as políticas públicas para as artes atualmente ainda são regidas pelos departamentos de marketing?
Sandro Ka: Os departamento de marketing das empresas também vão dar o tom de onde querem investir, de que jeito. Precisa sim se discutir isso, mas não sei se esse é o momento mais preciso e oportuno sobre essa discussão. Pontualmente, dá pra se dizer que a gente tem um espaço de referência em produção cultural, criação e cultura na cidade de Porto Alegre que se fragiliza muito nessa situação toda, e se fragilizando fragiliza o circuito cultural, a produção artística local e todo o campo da arte. É bem complicado.
MN: Você acha que deveria existir algum outro tipo de regulamentação sobre as políticas federais de incentivo a cultura? Algum tipo de regras que evitem que situações como essas aconteçam?
Sandro Ka: Em relação às políticas culturais, acho que a gente ainda tem que discutir mais sobre as formas de mecenato, de incentivo à cultura. Mas eu não acho que essa situação deva abalar ou motivar uma discussão maior sobre Lei Rouanet e outras formas de fomento. A gente tem já propostas de inovação, de melhoria da lei e desses sistemas. Há muito tempo estamos tentando aperfeiçoar e isso nunca vai pra frente.
Claro que grandes empresas têm seus interesses também mas a gente tem uma situação em Porto Alegre com a instituição do Santander Cultural de sempre trazer e propiciar eventos interessantíssimo, é um dos principais equipamentos culturais que a cidade tem.
O cuidado que se tem com as exposições e com as temáticas é primoroso, genial, por isso me surpreende e frustra bastante essa postura de encerramento da exposição.
MN: Qual a diferença de um caso como esse e das vezes que brasileiros apontaram artes racistas e conseguiram tirar elas de circulação? Como no mercado da moda, por exemplo?
Sandro Ka: Acho que no caso da Queer no museu as acusações são muito equivocadas, não refletem nada de verdadeiro. Talvez chamem atenção para outras estratégias necessárias, como colocar determinação de faixa etária especial para determinados tipos de trabalho e determinado tipo de público. Mas acho que não é o caso de uma situação de racismo, de qualquer outro tipo de coisa relacionada. As acusações já nascem mortas, já são fragilizadas e equivocadas, não levam para lugar nenhum, não contestam nada que já não se soubesse da exposição. São burras, são rasas.
Incrivelmente isso se tornou um monstro, quando na verdade era uma situação que não era nem pra se criar.
MN: Você acha que gênero e sexualidade deixarão de ser um assunto proibido em algum momento?
Sandro Ka: Gênero e sexualidade ainda são tabu. Principalmente quando o gênero e a sexualidade não são aqueles que se esperam socialmente, que está dentro do padrão heteronormativo dominante na sociedade, que hierarquiza as nossas formas de se relacionar com o mundo, com coisas, com as pessoas. Um padrão que diz quem vale mais e quem vale menos. Eu espero, enquanto artista, enquanto militante que discute essas questões no trabalho, que isso deixe de ser um tabu em algum momento. Mas a gente sempre vai ter algo para superar e continuar crescendo, indo pra frente.
Temos questões de transgressão que em determinadas épocas sempre chocaram, sempre incomodaram, sempre demoraram para serem aceitas. Se busca que primeiro a arte seja entendida simplesmente como arte. Ela pode vir carregada de questões políticas ou não, mas é importante que ela nunca perca essa novidade de apresentar outras possibilidades de relação com o mundo, de ressignificação do nosso entendimento sobre as coisas e da forma de se relacionar com as coisas. É bem importante que a arte nunca perca essa potência de transformação e de apresentar algo novo.
Com esse episódio a gente só perde. Porto Alegre voltou pro mapa das artes visuais, da cultura e política, mas por meio de um episódio triste. Pro cenário das artes visuais e das políticas culturais isso é gravíssimo, porque não tem debate, não tem diálogo, não tem conversa.
A postura do MBL é altamente conservadora e equivocada, é uma pressão sem precedentes porque eles queriam tirar proveito e se promover em cima dessa situação toda.
Enfraquece uma instituição cultural que havia bancado uma ideia genial de discutir questões de identidade e diversidade sexual por meio da arte, o que é incrível. Essa mobilização ter esse efeito perverso e contrário é muito danoso. Todo mundo perde com isso, mas principalmente sujeitos que sempre perdem, no caso os sujeitos LGBT.