Mas afinal de contas, o que aconteceu com o Havaí?
Bad Bunny entrou no estúdio para dar um recado sobre o neocolonialismo dos Estados Unidos.
Por Isabella Vilela para o S.O.M.
É preciso nomear as coisas: o governo neonazista de Donald Trump começou e ele está com pressa de se posicionar como o principal ditador do século 21. Garanto que até o final do texto essa frase não parecerá tão exagerada quando analisarmos os fatos e observarmos alguns dos passos geopolíticos do mais novo líder mundial até agora.
Em 2019, durante seu primeiro mandato, Donald Trump ofereceu 100 milhões de dólares pela Groenlândia. Na época, ninguém levou a proposta a sério. Já em janeiro de 2025, em uma coletiva de imprensa, Trump retomou a ideia, afirmando que “eles precisavam da Groenlândia por motivos de segurança nacional”. Quando questionado sobre o uso de força militar, o presidente respondeu que não assumiria nenhum compromisso, mas talvez tomasse alguma medida.
A Groenlândia é a maior ilha do mundo, localizada próxima ao Polo Norte. Ao norte, os EUA possuem, desde a Segunda Guerra Mundial, uma base militar em uma das regiões mais remotas do planeta. Inicialmente, o objetivo era impedir que os nazistas lançassem ataques aos EUA a partir dali. Posteriormente, a base se tornou um ponto estratégico para a defesa contra ataques nucleares da Rússia, que está localizada ali do lado. Vale lembrar que os EUA e alguns países europeus, incluindo a Dinamarca que detém o território da Groenlândia, fazem parte da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), cuja regra é clara: se um membro for atacado, todos os outros devem entrar em campo para defender. Assim, se os EUA invadirem um aliado, Trump estará violando as leis internacionais que proíbem uma democracia de atacar outra, então o uso da força militar pode ser descartado.
Entretanto, se você parar para analisar sobre os recursos naturais presentes no solo da Groenlândia, será mais fácil compreender o interesse do magnata por essa ilha.
Mas a História, como sempre, mostra que o fascínio dos Estados Unidos por ilhas não é novidade. Assim como a Groenlândia desperta o interesse atual, territórios paradisíacos como o Havaí e Porto Rico foram incorporados à esfera de influência norte-americana ao longo do tempo, muitas vezes motivados por interesses estratégicos e econômicos. É nesse contexto que Porto Rico, além de sua relevância geopolítica, também emerge no holofote do mundo como um centro cultural e ninguém melhor para simbolizar essa conexão do que o cantor porto-riquenho Bad Bunny, que acaba de lançar seu sétimo álbum de estúdio, intitulado Debí Tirar Más Fotos.
Com 17 faixas, a obra segue alcançando o topo das paradas de streamings globais, desbancando de forma orgânica a cantora Taylor Swift e mostrando porque o artista continua sendo um dos maiores nomes da música mundial. Porém, o que realmente chama atenção é o quanto esse novo trabalho revela um Bad Bunny ainda mais atento ao neocolonialismo que assombra seu país de origem.
Além do sucesso da música que leva o nome do álbum, está a faixa “Lo Que Le Pasó A Hawaii”. A canção é um relato, como uma carta aberta, que aborda a dor do povo porto-riquenho diante da exploração pelos Estados Unidos ao traçar paralelos com o que aconteceu com o Havaí, ao mesmo tempo que celebra a beleza e a resistência da ilha.
Mas, afinal, o que aconteceu com o Havaí e por que Bad Bunny canta que não quer que Porto Rico tenha o mesmo destino?
Para entender, precisamos voltar no tempo. Antes do contato com colonizadores, o Havaí era uma sociedade bastante conectada ao seu mundo natural, governada por um sistema de hierarquias familiares e cultivando a terra de maneira comunitária. A espiritualidade havaiana, baseada em uma rede politeísta e animista de relações familiares podia ser encontrada em todos os aspectos da vida. Música, dança, poesia e rituais eram pilares de uma cultura rica.
Essa harmonia começou a se desfazer em 1778, com a chegada dos europeus liderados pelo Capitão James Cook, da Grã-Bretanha. Além de introduzir novas práticas e valores, os invasores trouxeram doenças que devastaram a população indígena: de acordo com os historiadores, de mais de 800 mil pessoas antes do contato, restavam menos de 39 mil um século depois.
O Havaí conseguiu manter seu status como reino independente por mais de 100 anos, mas no século 19 a economia local foi dominada por cinco grandes empresas de açúcar dos Estados Unidos. Em 1893, a situação atingiu um ponto crítico: fuzileiros navais norte-americanos derrubaram à força a monarquia havaiana, liderada pela rainha Lili’uokalani, e os EUA anexaram o território em 1898. Com isso, o controle econômico, cultural e militar dos norte-americanos se consolidou.
Os impactos culturais foram devastadores. A língua havaiana foi banida das escolas, as práticas religiosas tradicionais foram marginalizadas e a terra foi redistribuída para beneficiar interesses empresariais e militares. Mesmo o status de estado concedido em 1959 não trouxe os benefícios esperados aos povos nativos. Muitos recursos foram destinados a indústrias, resorts e bases militares, enquanto as terras prometidas aos havaianos careciam de infraestrutura para seu uso pleno.
Apesar de um pedido público de desculpas emitido pelo presidente Clinton em 1993, nenhum direito real ou reparação foi garantido. Os havaianos nativos ainda enfrentam dificuldades para reivindicar terras ou justiça, presos em um sistema que os considera “tutelados do estado” e lhes nega a possibilidade de processar o governo.
E o que isso tem a ver com Porto Rico? Tudo. O debate sobre se a ilha deve se tornar um estado dos EUA ou continuar como um território independente segue intenso. Em 2022, Bad Bunny já havia abordado questões parecidas no videoclipe de El Apagón. O vídeo, disponibilizado no YouTube, inclui um documentário intitulado “Aqui Vive Gente” narrado pela jornalista independente Bianca Graulau, que denuncia o deslocamento de moradores nativos de Porto Rico devido à especulação imobiliária e à privatização de terras para a construção de resorts de luxo.
Esse cenário lembra muito o que aconteceu com o Havaí. Bianca Graulau, inclusive, visitou o arquipélago para entender de perto sobre os efeitos da ocupação norte-americana. Ali, ela coletou informações de que a água que antes era destinada à agricultura familiar foi desviada para a construção de hotéis de luxo, sempre com o discurso de trazer desenvolvimento e geração de emprego aos locais. Esse progresso vendido aos havaianos, na verdade, levou ao aumento dos custos de vida e a remoção da população nativa. Hoje, enquanto o luxo predomina nas regiões costeiras, muitos havaianos vivem em situação de rua.
Embora no Brasil o cantor enfrente certa dificuldade para se conectar com o público, toda a arte criada por Bad Bunny trouxe uma sensação de familiaridade para quem vive na América Latina. Mais do que isso, seu novo álbum ampliou a percepção daqueles que antes não o escutavam e, sobretudo, não costumavam prestar atenção aos países economicamente explorados pelos Estados Unidos e ao impacto direto dessa exploração sobre suas culturas, especialmente nas ilhas.
Mas como despertar a sensação de pertencimento em um país com mais de 8 milhões de km², que abriga diversas culturas e fala um idioma diferente de seus vizinhos? Talvez agora, em um momento tão delicado e determinante, o Brasil possa enxergar no cantor porto-riquenho um amigo que oferece muito mais do que reggaeton e dembow.