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O atual mal-estar com a política não se resume à crise de representatividade que vivemos. Problemas que ultrapassam o golpe reiteram dificuldades hoje presentes em todas as democracias ocidentais.

Eis, portanto, uma forte razão para que procuremos novos arranjos institucionais que, minimamente, garantam uma prática política mais coerente, mais transparente e, sobretudo, mais próxima aos anseios da sociedade.

Tamanho é o consenso em torno desse tema que uma comissão especial é designada na Câmara de Deputados para apreciar a reforma política por seis legislaturas consecutivas. No entanto, compreender a necessidade de novas regras não nos deve levar a acreditar que qualquer eventual mudança seja imediatamente benéfica.

Há, atualmente, na Câmara um espírito de “salve-se quem puder”. A crise de representatividade decorre da desaprovação, pelo eleitorado, do tipo de prática política hoje em curso.

No entanto, a preocupação central do debate parlamentar, nesse momento, é com o impacto desse desgosto sobre a taxa de renovação dos mandatos.

É questionável uma reforma política num ambiente como esse. O máximo que se espera são mudanças que favoreçam os que aí estão. Não surpreende, portanto, o ressurgimento de propostas como a do distritão, apresentada pela dupla Temer-Cunha em 2015.
Para seus defensores, esse novo sistema eleitoral tem benefícios como simplificar a compreensão da eleição, corrigir distorções do sistema proporcional, bem como reduzir gastos.

O primeiro argumento é verdadeiro. No distritão, elegem-se aqueles mais bem votados. Tal simplicidade, contudo, oculta um aspecto nefasto. Como lembram diversos cientistas políticos, o distritão pode ser caracterizado pela “arte de desperdiçar votos”.

Isso se deve ao fato de que todos os votos dados aos candidatos derrotados são sumariamente rejeitados, não sendo utilizados para a composição do parlamento. A opinião política expressa por esses eleitores acaba ignorada.

Trata-se do exato oposto ao que ocorre em sistemas proporcionais, como o do voto aberto (que atualmente adotamos) ou o distrital-misto. Em ambos, o número de eleitos por cada partido ou coligação é definido em função do número de votos que esses receberam – de modo proporcional à votação obtida. Cada voto contribui para a configuração dos eleitos, nenhum é desperdiçado.

O segundo argumento em favor do distritão, o da distorção, refere-se a um fenômeno célebre, de quando um puxador de votos acaba elegendo candidatos desconhecidos – o chamado “efeito Tiririca”.

Para o pesquisador da UFPR, Márcio Carlomagno, esse problema, na verdade, não existe. Aplicando a regra do distritão aos números da eleição de 2014, ele descobriu que os eleitos se alterariam em apenas 8% dos casos, quase que residual.

O terceiro aspecto aponta uma verdade para concluir uma falácia.

O distritão proporcionaria uma eleição mais disputada, servindo de incentivo para que menos pessoas se candidatassem. Fato. Mas nada faz crer que daí derive a redução do total de gastos numa campanha.

Pelo contrário. Dada a maior concorrência, mais incentivos há para que se gaste ainda mais. As eleições presidenciais são exemplo notório: quase não há limites para uma contínua e injustificada ampliação de gastos.

Há, aí, a combinação com um segundo efeito deletério: o da personalização da política. O aumento da concorrência faz com que a disputa – e a imagem construída em torno dessa – passe a girar em função de características distintivas dos candidatos.

Importam sua história pessoal e seu sucesso profissional. Pouco espaço restará para a discussão de projetos para a coletividade.

Trata-se, portanto, de uma medida que vai em sentido contrário a um dos temas de maior urgência atualmente: o de resgate dos partidos.

Por mais débeis que sejam, os partidos ainda são ferramentas essenciais à prática política.

Desconhece-se outro tipo de arranjo institucional que favoreça a coletivização de ideais e propostas, com vistas à eleição de executivos e legislativos. Nesse sentido, uma reforma política deveria ter como prioridade criar condições para que as agremiações partidárias possam funcionar efetivamente, cumprindo com as tarefas a elas atribuídas.

Pois o distritão opera em sentido contrário. Como a definição dos eleitos independe do número de votos recebidos por partidos ou coligações, o sucesso dos candidatos passa a repousar unicamente em seus próprios esforços. Partidos se tornam, desse modo, apenas um mecanismo para formalizar candidaturas junto aos cartórios eleitorais. Os candidatos se transformam em partidos de si mesmos.

Encontramos aqui mais uma vantagem do modelo proporcional. Como opera agregando votos, ele assegura a minorias a oportunidade de alcançar a votação mínima necessária para obter representação política, na forma de vereadores ou deputados.

O distritão inviabiliza isso. Impedidos de agregar votos entre diversas candidaturas, minorias como agrupamentos de trabalhadores, por exemplo, estarão praticamente proibidos de eleger representantes próprios. Não há qualquer tipo de igualdade política em disputas “cabeça-a-cabeça”, como a que o distritão institui.

O mesmo raciocínio pode ser aplicado à representação de regiões específicas de grandes estados. Tais espaços, buscam concentrar votos em candidatos próprios, para que estes atuem no parlamento em favor de suas localidades, às vezes marginalizadas. Com o distritão, as regiões metropolitanas tendem a ter grande vantagem, pois concentram a grande maioria do eleitorado. Serão desses locais a maioria dos parlamentares eleita.

Uma reforma política é urgente, não restam dúvidas. Sua elaboração, contudo, não pode ser influenciada pelos interesses dos que ora estão no poder. Esse processo precisa ser conduzido por um corpo independente, democraticamente eleito, mas distante da luta política cotidiana.

A convocação de uma Assembleia Constituinte exclusiva seria a melhor opção à disposição, mesmo que, momentaneamente, careça de consenso para ser implementada.

Enquanto não há condições para tanto, importa assegurar que o mínimo de representatividade ainda existente em nosso sistema político não seja dizimada.

Não há sentido, portanto, que uma reforma política avance num momento em que prepondera certo tipo de idiotia parlamentar, em que os sequestrados pela lógica interna se esquecem dos representados.

Não mudaremos isso sem o voto nas urnas.

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