‘Malês’: Testamento de resistência com sobrenome Pitanga
A exibição do filme na 28ª Mostra de Tiradentes aconteceu na data em que se rememora os 190 anos da revolta dos Malês
Por Viviane Pistache
Que Antonio Pitanga seja legado é consenso para quem conhece cinema. Nascido Antonio Luiz Sampaio, foi batizado por seu personagem Pitanga no filme ‘Bahia de Todos os Santos‘, de Trigueirinho Neto em 1960. Desde então é ator e coautor de obras e movimentos do nosso cinema, com destaque para o Cinema Novo.
Com uma carreira povoada por clássicos do cinema, novelas e teatro, Antonio Pitanga estreou como diretor no filme ‘Na Boca do Mundo’, de 1978, uma trama trágica que seu personagem, Antônio, protagoniza com Clarisse, vivida por Norma Benguell. O filme mete a mão na cumbuca de conflitos que espreitam o encontro de uma mulher branca, um homem negro e uma negra de pele clara.
Numa insuspeita referência ao arquétipo de Exu como a boca que tudo come, Antônio não apenas abre caminhos para debates difíceis e necessários, como encarna um homem negro vampirizado pela branquitude, bem do feitio da ideia de “comer o Outro”, proposto por Bell Hooks.
Mas como diz o ditado mineiro, enquanto existir cavalo, São Jorge não anda a pé. Antonio Pitanga é tão cavaleiro quanto cavalo do nosso cinema, seja domando rédeas ou montado por personagens. De corpo fechado e Ori aberto, Pitanga ginga como bom capoeirista, na malandragem de quem encarna tantos personagens; mas se livrando do encosto dos estereótipos enquanto faz história. Com muito gozo e sorriso franco.
Pitanga é herança. Baiano nascido no Pelourinho, herdou o axé da resistência, eternizada no seu mais recente longa ‘Malês’. A ficha técnica do filme configura uma interessante etnografia de parcerias e afetos que Pitanga cultivou ao longo da vida, a exemplo da produção de Flávio Tambellini, coprodução de Cacá Diegues e Lázaro Ramos, roteiro de Manuela Dias e atuação de Rocco Pitanga e Camila Pitanga.
Ainda que seja Pitanga, o filme demorou vinte e seis anos desde a concepção até a estreia, como triste sintoma do gargalo financeiro que ainda sufoca um cinema de pele preta. Seja na revolta dos Malês ou fazendo cinema, insurgência e estratégia são armas de uma negritude que fecunda legados como Pitanga, uma semente brasileira na diáspora.
Se a revolta dos Malês é tratada como uma nota de rodapé nos livros de história, o filme não se furta de detalhar este capítulo seminal de aquilombamento. ‘Malês’ é sobre a altivez de gente escravizada com letramento seja na ciência ou na fé em Allah. Trama-se em árabe, haussá, yorubá e pretuguês, uma economia solidária para a alforria coletiva. Quando o velho líder africano Licutam (Antonio Pitanga) é preso, Ahuna (Rodrigo de Odé), Manoel Calafate (Bukassa Kabengele), Vitório Sule (Heraldo de Deus), Luís Sanim (Thiago Justino) e Dassault (Rocco Pitanga) orquestram o levante contra perversidade escravocrata.
O filme teve tempo de maturação que se traduz em diálogos em diversos idiomas, rituais, atuação gestual da religião muçulmana, bem como direção de arte e locações que ancoram em adensada pesquisa. A dramaturgia assim se ancora numa vultuosa sequência de beats históricos que conferem ao filme um caráter épico que também soa como uma novela de múltiplas tramas condensadas. Não por acaso, o filme será exibido como minissérie de quatro capítulos na TV Globo.
Tendo em vista que toda produção de época costuma ter valores desafiadores, ‘Malês’ teve um orçamento de 17 milhões de reais, uma cifra histórica para um realizador negro. Mas considerando que a centelha que acendeu no coração de Antonio Pitanga o desejo de realização de ‘Malês’, foi ‘Amistad’, de Steven Spielberg, que em 1997 custou 36 milhões de dólares e arrecadou 44 milhões, ‘Malês’ é sintoma da eterna batalha de Davi contra Golias que é realidade do cinema brasileiro.
Apesar de ser um documento histórico, a audiência de um filme do quilate de ‘Malês’ terá seus desafios, mesmo com exibição na maior emissora do país. O convite para sua exibição em pelo menos três universidades norte-americanas como Harvard, Pennsylvania e Princeton, ainda que alvissareiro, sugere que seja um filme de mais acolhida no universo acadêmico do que na cura em massa de um imaginário nacional tão adoecido pelo legado da escravidão. Assim, o fato do filme ser selecionado para o Festival Pan-Africana de Cinema e Televisão de Uagadugu (FESPACO), em Burkina Faso, parece justiça poética que palmilha em travessia reversa a condenação ao degredo para quem lutou na revolta dos Malês.
Pitanga é codinome de axé. A exibição do filme na 28ª Mostra de Tiradentes na aconteceu na data em que se rememora os 190 anos da revolta dos Malês, cujo ápice se deu em 25 de janeiro de 1835. A sessão prevista ao ar livre na praça central da cidade, chegou a ser ameaçada pela chuva que antecedeu a exibição. Mas o cacique coral interveio e a sessão seguida de debate foi um sucesso. Enquanto existir cavalo, São Jorge não anda a pé.
Viviane Pistache é preta, mineira, pesquisadora, roteirista, curadora e, de vez em quando, crítica de cinema.