Por Alexandre Cunha

Vidas sem rumos que têm seus caminhos cruzados em meio a uma cidade apagada do mapa. ‘Mais Pesado é o Céu’ – filme que entrou em cartaz nesta quinta-feira (8) – parte de uma história verdadeira para costurar sua narrativa: o êxodo forçado do povo de Jaguaribara, município do interior do Ceará, removido de suas casas em 2001 para a construção da barragem do Castanhão, uma das maiores da região Nordeste. 

Dirigido por Petrus Cariry, o filme é uma história de retornos. Antônio (Matheus Nachtergaele) volta à antiga cidade à procura de algo ou alguém do passado. Quem também volta para lá é Teresa (Ana Luiza Rios); à beira das águas que cobrem a antiga Jaguaribara, ela encontra um bebê abandonado em uma canoa (referência bíblica a Moisés? Talvez, já que o filme aborda a crença cristã em algumas partes da história). O destino dos três personagens se entrelaça; juntos, buscam um sentido, um propósito para seguir. Arranjar leite para alimentar a criança se torna o compromisso diário. Mas como conseguir dinheiro em um cenário devastado pela aridez e, principalmente, pela desumanidade dos homens?

Entre estradas de chão batido e vegetações secas, tão típicas do sertão nordestino, a narrativa transcorre em tempo muito próprio. Há cenas lindíssimas, de contemplação daquele cenário belo e desolador, onde o som dos bichos é o único capturado pela câmera de Cariry (aplauso para o desenho de som de Érico Paiva). É como se o filme nos transportasse para os períodos mais remotos da humanidade: em um casebre sem móveis, as chamas de um fogão a lenha são as coisas mais próximas de uma ideia de vitalidade. Os corpos transitam com fome, com medo do amanhã. O choro da criança é alto e angustia os personagens – bem como os espectadores. Naquele ambiente, apenas um radinho de pilha traz algum conforto: uma música para cantarolar, um sermão para ouvir e tentar se agarrar à fé.

O lugar da mulher, em uma cidade do interior e com quase nenhuma oportunidade, é um ponto de foco de ‘Mais Pesado é o Céu’. As violências, explícitas e implícitas, sofridas pela personagem Teresa são retratadas em crescente (até culminar o catártico final). Após uma cena onde ela é vítima de uma agressão, Teresa se senta à beira da estrada e grita aos carros que passam. Cada grito é um espelho da revolta de quem tem sua dignidade jogada no lixo, diariamente. Por outro lado, é bonito ver como o diretor traz personagens femininas que dão suporte e acalentam, um pouco, o sofrimento da jovem. A sororidade vinda de Letícia, mulher preta e trans, vivida por Danny Barbosa, é um raio de humanidade em um local tão pétreo. Sílvia Buarque, que dá vida a Fátima, também constrói uma personagem afetuosa e, na medida do possível, reconfortante. 

Carregando os filmes nas costas, Ana Luiza Rios e Matheus Nachtergaele entregam atuações notáveis; os detalhes nos gestos e nos olhares são muito significantes. Ressalva para uma das melhores cenas do filme, onde os dois, frente a frente, têm uma conversa repleta de segundas intenções e, sem um toque, carregada de erotismo. A fotografia, também assinada por Petrus Cariry, é um personagem à parte; luzes e sombras traduzem, em cena, muito do que o filme quer passar ao espectador. Nas externas, o sol castigante é dosado com muitas cenas à noite, onde a escuridão envolve os atores. A estética é, sem dúvidas, o grande mérito do filme.

Em relação ao roteiro, ‘Mais Pesado é o Céu’ acerta mais quando focaliza sua lente nos dramas individuais – ainda que compartilhados – dos seus personagens. Quando tenta uma abordagem macro, buscando ser um libelo contra as mazelas de uma sociedade desigual, o filme perde força e acaba por ficar na superficialidade. São temas muito complexos – como a violência de gênero num país patriarcal – para cenas rápidas demais, sem um tempo e um aprofundamento necessários. Outro ponto que me incomoda no filme é uma escolha excessivamente didática da trilha sonora. Explico: para reforçar a ideia de um sentimento de paixão, em certa cena, o filme aposta numa música da Banda Cavalo de Pau que diz isso com todas as letras nos seus versos. Depois, em outro momento, quando um personagem já havia demonstrado pensamentos suicidas, o filme traz uma canção onde há frases sobre contemplar o abismo e ser contemplado de volta. 

Ainda assim, ‘Mais Pesado é o Céu’ é uma contundente obra sobre como seres humanos postos em situações-limites se animalizam e se destroem. Ainda que traga uma concepção de Nordeste e de sertão tão repetida no cinema brasileiro, o filme de Petrus Cariry sabe que ainda é necessário fazer filmes assim. Porque ainda existem pessoas assim, situações assim, e isso não pode mais se admitir. No Brasil profundo, há dores e violências que progresso nenhum reverteu. E um cinema que olha para essas feridas, com cuidado e esmero, precisa ser reconhecido.