Mais de dois meses depois, ninguém foi preso por chacina de família de ambientalista
Delegado do caso disse que só tem depoimentos de familiares e não há notícia de conclusão dos laudos de exumação
Continua sem desfecho a investigação sobre o assassinato do ambientalista Zé do Lago, de sua mulher Márcia Nunes Lisboa e da enteada Joana, em janeiro deste ano, em São Félix do Xingu (PA). Eles foram mortos a tiros. Na cena do crime a polícia encontrou 18 cápsulas.
De acordo com reportagem do site Amazônia Real, o delegado do caso, Cláudio Galeno Filho, concedeu uma entrevista a uma TV de Belém em fevereiro, sugerindo que Zé do Lago teria um passado relacionado a “crimes fundiários”.
Ele alegou que teria tomado como base, depoimento do filho de Zé do Lago. “Agora, pistolagem ou qualquer outra atividade, ainda não temos conclusões específicas sobre isso. O que temos são depoimentos de familiares, que relatam que o pai trabalhou como gerente de fazenda há 20 anos”, disse o delegado.
À TV, ele argumentou ainda que a vítima morava em um “local de difícil acesso”, que era “uma pessoa super reservada” e que “não gostava de aparecer em fotos”. Mas ao Amazônia Real, ele se esquivou dizendo que o filho da vítima teria dito que o pai “tinha um trabalho, era gerente ou feitor de uma fazenda, há muito tempo. Por conta disso, não gostava de tirar fotos, de ser visto. Mas em momento algum eu disse que o crime era relacionado, vinculado a isso. Tudo depende ainda da investigação”, afirmou. Procurado pela reportagem do Amazônia Real, o filho de Zé do Lago não quis conceder entrevista.
Mas o cunhado de Zé do Lago, Márcio Nunes, disse que não sabia de conflitos como estes sugeridos pelo delegado. “O trabalho deles era esse: as tartarugas, o trabalho de guia turístico”, afirmou. “Eles viviam lá, mas não estavam se escondendo. Eles tinham celular, tinham rede social, tinham zap [Whatsapp], postavam”, declarou.
“A Amazônia Real tentou, sem sucesso, levantar processos nos nomes das vítimas dentro dos sistemas do Judiciário. Nada foi encontrado nas consultas do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1) e do Tribunal de Justiça do Estado do Pará (TJ-PA) nos nomes de Márcia e Joane. Da mesma forma, nada consta no TRF1 em relação a Zé do Lago. Já na consulta do TJ-PA, como o nome de Zé do Lago é apenas José Gomes, a pesquisa gerou mais de mil resultados e, por isso, os dados não são disponibilizados”, diz trecho da reportagem.
Invasão, ocupação e grilagem de terras
O site Amazônia Real relembrou uma reportagem da Folha de São Paulo que indicou que Zé do Lago morava dentro de uma área reivindicada pelo pecuarista Francisco de Souza Torres, irmão do prefeito de São Félix do Xingu, João Cleber de Sousa Torres (MDB). O ambientalista estaria sendo pressionado por Francisco Torres a vender seu sítio.
Na mesma reportagem, o jornal apresenta o trecho de um inquérito de 2003, feito pelo Ministério Público Federal (MPF). “João Cleber de Sousa Torres e Francisco de Sousa Torres (Torrim) são os comandantes do crime organizado na região de São Félix do Xingu. À frente da cúpula, agem e promovem a invasão, ocupação e grilagem de terras públicas; são donos da madeireira Impanguçu Madeira e Maginga. Pelo perigo que representam, são muito temidos na região”.
Mas o delegado Galeno Filho, na entrevista para a Amazônia Real, afirmou que “em momento algum, das conversas entre Zé do Lago e seu filho, o pai relatou qualquer tipo de ameaça que estaria sofrendo ou algo parecido. Não foi relatado absolutamente nada que pudesse motivar o crime”, disse.
A reportagem destaca ainda que entidades de defesa dos direitos humanos e organizações ambientalistas questionam o processo de investigação, por exemplo, quanto à demora na realização da exumação dos corpos. Encontrados no dia 9, segundo o delegado, teriam sido mortos cerca de três dias antes. Por sua vez, a exumação só ocorreu em 16 de janeiro e no dia 19, os corpos foram devolvidos ao cemitério. E não há notícias sobre a conclusão dos laudos.
O advogado José Maria Vieira, que é presidente da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil no Pará (OAB-PA), disse que “esse procedimento não foi normal”. Ele disse ao Amazônia Real que a OAB e outras entidades em defesa dos direitos humanos estão cientes desse e outros equívocos na condução da investigação. Erros no inquérito são comuns em crimes dessa natureza, lamentou o advogado.
“Em São Félix, durante a descoberta dos corpos, havia pessoas filmando, comprometendo a cena do crime. Nosso mal é não ter uma cultura de preservação da cena do crime, não há um controle investigativo”, disse José Maria. “Há aqui uma crítica muito grande ao sistema policial. É preciso incentivar o procedimento de investigação correto”, disse à reportagem.
Sobre o hiato de dez dias entre os assassinatos e a realização da perícia, o delegado Cláudio Galeno Filho afirmou que não houve demora, mas “apenas o fato de o Pará ter dimensões continentais”.
Como não há perícia oficial do Estado paraense em São Félix do Xingu, argumentou o delegado, nem câmara fria no hospital, os corpos tiveram de ser enterrados. “Quando cheguei, na sexta [14 de janeiro], os corpos já haviam sido sepultados. No sábado, fizemos representação ao juiz. E no domingo a Segup [Secretaria de Segurança Pública do Pará] disponibilizou aeronave para fazer o transporte dos corpos de São Félix a Marabá.”
Por conta dos atropelos da investigação, a OAB-PA encaminhou ofício ao procurador-geral de Justiça, César Matta Júnior, chefe do Ministério Público do Estado do Pará (MPPA), no qual solicita que seja designado promotor de Justiça para acompanhar as investigações; e ainda, ao diretor da Divisão de Homicídios da Polícia Civil, delegado Cláudio Galeno Filho, que investiga o caso, para que especialistas fossem deslocados ao local do crime.
Segundo o Amazônia Real, no início de fevereiro, o MPF anunciou a possibilidade de federalização das investigações da chacina de São Félix do Xingu. Entidades defensoras dos direitos humanos denunciaram a morosidade nas investigações.
O MPPA informou que os promotores Odélio Divino Garcia Júnior e Suldblano de Oliveira Gomes, que respondem pelas promotorias de Justiça de São Félix do Xingu, acompanham as investigações.
Sobre o caso
Os assassinatos foram cometidos na localidade Cachoeira do Mucura, que fica a 90 quilômetros da zona urbana de São Félix do Xingu, município que tem cerca de 135 mil habitantes. A chacina foi dentro da Área de Proteção Ambiental Triunfo do Xingu, unidade de conservação de gestão estadual, como confirma nota da Comissão Pastoral da Terra (CPT). Para a CPT, pela quantidade de tiros disparados e como nenhum pertence da família foi furtado, “trata-se de uma execução, provavelmente, a mando de alguém.” Na avaliação da comissão, a forma dos assassinatos surpreendeu a família, não permitindo que nenhuma vítima escapasse, corroborando a tese de que foi uma execução.
Criada em 2006, por meio do Decreto estadual 2.612, a APA Triunfo do Xingu tem uma área de 1,6 milhão de hectares, divididos entre os municípios de São Félix e Altamira. A APA faz parte do Mosaico Terra do Meio, conjunto de áreas protegidas em um dos maiores corredores socioambientais do mundo. A unidade, contudo, já teve 40% de seu território destinado a outros usos, sobretudo à pecuária. Entre 2018 e 2020, mais de 2 mil árvores foram devastadas a cada hora na unidade. Em agosto de 2020, a APA foi a unidade de conservação que mais sofreu queimadas em toda a Amazônia.
Polícia Científica
A Polícia Científica do Pará informou, por meio de nota, que, quando o órgão foi acionado, os corpos dos ambientalistas já haviam sido sepultados. Para a realização da exumação, é preciso autorização judicial, o que só ocorreu no dia 16, mais de uma semana após a chacina. “Por terem passado quase sete dias sepultados, os corpos serão submetidos a exames complexos de análise, que após finalizados serão liberados aos familiares e o laudo repassado ao delegado responsável pelo caso, que servirá como prova técnica do inquérito”, informou a Polícia Científica. Os corpos estão sendo periciados em Marabá.
A Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social (Segup) e a Polícia Civil também foram procuradas, mas não se manifestaram até a publicação desta reportagem.
(Com Amazônia Real/Moisés Sarraf)