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O ano de 2021 foi marcado pela corrida da vacinação contra a COVID-19 no mundo todo: o Brasil, ainda que atrasado de forma irremediável pela incompetência do governo federal na gestão da pandemia, atingiu em agosto a marca de 50 milhões de pessoas imunizadas. O número de brasileiros que tomaram as duas doses ou dose única da vacina contra COVID-19, contudo, ainda é muito baixo: corresponde a pouco mais de 30% da população. Mesmo com quase 70% dos brasileiros ainda desprotegidos, há quem alimente neste momento uma falsa sensação de retorno precoce à normalidade – essa atmosfera de que está tudo bem antes de realmente estar pode custar ainda mais vidas em uma conta nefasta que já se aproxima de 600 mil óbitos pela doença no país. 

Não é segredo, ainda que seja pouco discutido, que a pandemia colocou uma lente de aumento nas desigualdades estruturais que marcam historicamente a sociedade brasileira. Em São Paulo, análises do LabCidade a partir de dados do Ministério da Saúde mostraram que, até maio deste ano, 16% ou mais de moradores de bairros paulistanos ricos como Moema e Pinheiros foram vacinados – nesses bairros, a mortalidade por Covid ficou entre 10 e 20 casos a cada 10 mil habitantes. Já em bairros mais pobres e com uma concentração maior de negros, como Cidade Tiradentes, Parelheiros e Jaraguá, de 4% a 8% da população foi vacinada, taxas de duas a quatro vezes inferiores em relação aos bairros mais ricos. Essas regiões registraram 50 mortes ou mais a cada 10 mil habitantes. 

Um estudo epidemiológico da UFMG chegou a reafirmar que os índices de mortalidade por Covid são mais altos em áreas de maior vulnerabilidade social e que, por isso, moradores dessas regiões deveriam ganhar prioridade na escala de vacinação – mas isso nunca aconteceu. Enquanto isso, o governo de São Paulo decidiu encerrar todas as medidas de restrições de horário e público para estabelecimentos comerciais e serviços de todos os setores econômicos, apesar da pandemia ainda vitimar centenas de pessoas diariamente. Os principais atingidos pela flexibilização prematura serão, novamente, os setores mais vulneráveis da sociedade,as populações pretas, pobres e periféricas, mantendo a velha política de descaso do Estado frente aos que são justamente os mais necessitados. 

Isso acontece porque a resposta dada pelos sistemas de saúde mundo afora em relação ao controle da pandemia não tão descoladas das respostas políticas, sociais, ideológicas apresentadas em outros contextos. Os governos responderam à pandemia de COVID-19 de acordo com suas orientações políticas, sociais e ideológicas – não é por acaso que a saída via soluções falsas e individualistas, como o uso de remédios de ineficácia comprovada, foi estimulada por governos de direita e neoliberais em todo o mundo. A pandemia de COVID-19 escancarou uma disputa antiga e profunda no campo da saúde: de um lado, a saúde tratada como processo que demanda respostas coletivas e pactos sociais; de outro lado, a saúde como um conjunto de procedimentos individuais, de produtos comercializáveis e individuais.

A eficácia da vacinação contraria os interesses políticos e econômicos da agenda neoliberal por ser uma saída coletiva e por apontar a necessidade humana de sistemas de saúde globais. Subvertendo a lógica de procedimento individual, a vacina só faz sentido do ponto de vista da eficácia quando aplicada de forma massiva na população – não adianta comemorar 23,85% da população vacinada, é preciso garantir que uma ampla maioria da população esteja protegida para que a pandemia seja controlada e para que novas variantes não se desenvolvam. Essa resposta eficaz da vacinação, claro, não chega de forma democrática. 

Se por um lado o negacionismo atrasou a vacinação, por outro os governos não aplicaram medidas para diminuir a desigualdade no processo de imunização, como busca-ativa nas periferias, divulgação e contratação de mais profissionais. Globalmente, os países mais pobres são prejudicados nessa distribuição de insumos e, dentro dos países, as populações pobres e racializadas são as que têm o acesso mais atrasado. Mesmo no Brasil, um dos poucos países produtores de vacina e que conta com um sistema bem consolidado de vacinação em massa (com postos de saúde capilarizados, sistema de vigilância epidemiológica, cadeia de frio), lidamos com atraso e desigualdade no acesso – reflexo de um governo negacionista, neoliberal e racista. 

Os dois estudos apontados no começo do texto não são os únicos a relacionar incidência e mortalidade da COVID-19 com marcadores sociais de desigualdade, mas, mesmo assim, nada foi feito nesse sentido por parte de prefeitos, governadores e presidentes que atendem exclusivamente às elites. Um estudo da Unifesp em parceria com a Fundação Tide Setubal, apontou que, nos bairros com maior número de usuários de transporte coletivo, 80% dos óbitos por coronavírus podem estar relacionados à necessidade de deslocamento. Entre as dez regiões da capital com mais mortes pela doença, nove são líderes no número de viagens em ônibus, trem e metrô. Não é uma coincidência que a primeira morte de COVID-19 em São Paulo tenha sido a de uma empregada doméstica. 

Mais uma vez, os interesses de um modelo capitalista predatório estão sendo colocados à frente da preservação de vidas que ainda hoje são tratadas como descartáveis. A atmosfera de fim da vacinação com uma parcela tão pequena da população completamente imunizada planta no imaginário coletivo a falsa sensação de que a pandemia acabou e minimiza, por exemplo, a importância da segunda dose. O Estado deveria deixar claro com mais firmeza que a segunda dose da vacina contra a COVID-19 não é um reforço, mas necessidade para a eficácia mínima da imunização – ao invés disso, temos reabertura sem limite de público e horário de bares e baladas, além da revogação de direitos sociais como a suspensão das reintegrações de posse durante a pandemia. 

O recado que precisa ser dado é: não podemos abaixar a guarda em um momento tão delicado ainda da luta contra a COVID-19. O avanço da vacinação, ainda que tardio frente às oportunidades que o Brasil teve, dá forças a todos nós para seguir lutando pela segunda dose nas periferias e contra a fome que atinge aqueles que são menos favorecidos. Mas é preciso que exista a compreensão coletiva de que todos, principalmente aqueles que ocupam cargos públicos, façam sua parte respeitando as medidas de isolamento e distanciamento social sempre que possível, mantenham hábitos de assepsia, evitem aglomerações, não abandonem o uso de máscaras e estimulem a imunização completa da

comunidade ao redor. Continuemos na solidariedade ativa nas periferias, lutando contra a fome e na construção e organização cotidiana da luta contra o governo de morte. 

Sobre Luana Alves 

Luana Alves é feminista negra e trabalhadora da saúde. Tem 27 anos, nasceu em Santos, no litoral paulista, e é psicóloga, formada pela Universidade de São Paulo (USP), onde se especializou em Saúde Coletiva e Atenção Primária, atuando em Unidades Básicas de Saúde da Zona Oeste de São Paulo. Na Universidade, Luana foi parte ativa da luta que conquistou a adoção de cotas étnico-raciais e sociais na USP. Luana atua na Rede Emancipa, um movimento social de educação popular nacional que, nas periferias de São Paulo, organiza dezenas de cursinhos pré-universitários gratuitos que proporcionam o acesso de milhares de estudantes de escola pública à universidade. Aceitou o desafio de ser uma porta-voz das lutas antirracista, feminista, antifacista, das periferias, das LGBTQIA+, e em defesa da educação pública e do Sistema Único de Saúde (SUS) integral, gratuito e universal. Hoje Luana é vereadora eleita pelo PSOL em São Paulo, com 37.550 votos.

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