Por Mariana Fagundes-Ausani para a Cobertura Colaborativa NINJA Esporte Clube #Paris2024

Na Paris dos cartões portais, a França se empenha para não enquadrar qualquer vestígio de miséria. O ano que antecedeu o início dos Jogos Olímpicos de 2024 foi marcado por intensas estratégias de limpeza social na região parisiense, conforme destacam as 104 associações solidárias agrupadas no coletivo Les Revers de la Médaille – nome que faz um jogo de palavras entre a expressão “o outro lado da moeda” e a ideia de sonhar com a conquista de uma medalha. O cenário não é novo, mas, em Paris, conta com agravantes associados ao cenário sociopolítico nacional: o protagonismo do rio Sena como ponto central dos jogos e das festividades em torno desses, em paralelo a uma crise imigratória que levou refugiados a se abrigarem às margens do rio ao longo dos anos recentes.

Nas últimas semanas, Paris enfrentou grandes ondas de expulsão de pessoas sem residência fixa – ou, em outros termos, pessoas em situação de rua – de áreas centrais da cidade ou próximas a zonas de jogos. A equipe da Mídia NINJA na França percorreu regiões nos arredores das vilas olímpicas em que houve uma multiplicação de despejos no mês de julho, ao lado de Paul Alauzy, coordenador da área de Vigilância Sanitária e Apoio Psicológico na Médicos do Mundo, organização não governamental que presta cuidados de saúde a populações vulneráveis, e porta-voz do coletivo Les Revers de la Médaille. Cientista político e mestre em Direitos Humanos e Ação Humanitária, Alauzy chama atenção para a forma como os preparativos de Paris para os Jogos afetam as comunidades marginalizadas da cidade à medida em que essas não são vistas como prioridade pelas autoridades locais. “Há esforços para retirar da foto tudo aquilo que não cai bem, que não é bonito”, afirma.

O grupo denuncia as políticas do Estado francês voltadas para expulsar e invisibilizar populações consideradas pelas autoridades públicas como indesejáveis dos locais onde os Jogos Olímpicos estão sendo realizados sem garantir abrigos permanentes a essas pessoas. As ações de exclusão socio-espacial, amplamente ligadas à organização dos Jogos Olímpicos e Paraolímpicos, atingem refugiados, menores desacompanhados e indivíduos em situação de rua de modo geral, alocados em moradias precárias ou que dependem do espaço público para viver e trabalhar, como destaca o Relatório de Limpeza Social antes dos Jogos Olímpicos 2024, organizado pelo coletivo.

Durante o período de 2023 e 2024, o Observatório de Expulsão de Moradias Informais (tradução livre para Observatoire des expulsions de lieux de vie informels) registrou 138 despejos na região de Ilha de França (em francês, Île-de-France), indicando um aumento de 38,5% em comparação ao período de 2021-2022. Essas ações atingiram mais de 12 mil pessoas entre abril de 2023 e maio de 2024, sendo que quase 3.500 delas eram menores de idade.

A polícia realizou 26 operações de despejo em acampamentos de rua nos primeiros cinco meses deste ano, quase a mesma quantidade que ocorreu em todo o ano de 2022 (quando foram realizadas 30). Com a aproximação da passagem da chama olímpica e, na sequência, do início dos jogos, moradores da cidade assistiram a intensificação dos esforços de exclusão social. Em 2023, 3 mil vagas nos albergues sociais foram suprimidas sob a alegação governamental de que os hotéis não precisariam fornecer quartos para o sistema de abrigos de emergência da cidade em decorrência da necessidade de liberar lugar para os turistas que viriam acompanhar as Olimpíadas.

Com a aproximação do evento, a capital francesa presenciou forte aumento das varreduras policiais na área central e nas periferias. A cada desocupação nas ruas, as vítimas podiam escolher entre duas opções: embarcar em um ônibus para uma residência temporária nos centros de recepção regionais em outra parte do país e entrar no programa de realocação ou encontrar outro lugar para dormir. Distantes de Paris, 10 cidades francesas foram escaladas para receber grupos de refugiados. Contudo, segundo Alauzy, as soluções de abrigo são frequentemente temporárias, duram poucos dias e, após esse período, as pessoas acabam retornando para as ruas.

16 de julho – Evacuação de diversos acampamentos de refugiados no norte de Paris. Vídeo: CLPRESS

Se uma pessoa adere ao programa de realocação, o governo fornece a ela algumas semanas de moradia enquanto os assistentes sociais a ajudam a avaliar suas chances de se qualificar para asilo ou residência permanente. Esses solicitantes são transferidos para um alojamento de longo prazo e recebem uma ajuda financeira de baixo custo enquanto seus casos são analisados, processo que pode levar seis meses ou mais. Aqueles que não se qualificam ou se recusam a se candidatar são enviados para o sistema de abrigo de emergência. Os estrangeiros podem ainda serem convidados a se retirar do país.

Dados da Direção Regional e Interdepartamental de Habitação e Alojamento da França (Direction Régionale et Interdépartementale de l’Hébergement et du Logement) de novembro de 2023 apontam que 38% das pessoas beneficiadas por essa política social conseguem moradias de longo prazo. Enquanto 46% delas acabam voltando para o sistema de abrigos de emergência de curto prazo do país, que não tem leitos suficientes para atender à demanda.

Herança colonial: a arquitetura da exclusão na Paris dos Jogos

Os impactos sociais dos Jogos Olímpicos na cidade de Paris resultam também na implementação de dispositivos anti-pessoas sem residência fixa em bairros da região. A aporofobia, ou aversão à pobreza, evidencia-se a partir de estratégias mais explícitas, como a instalação de grades debaixo de pontes e o erguimento de muros para cobrir espaços abertos em construções antigas. Assim como se traduz por meio de arquiteturas mais sutis, como a inserção de mesas de piquenique, de pedras ornamentais e de vasos de plantas em lugares onde costumava haver acampamentos e tendas de quem vive na rua.

Alauzy, do coletivo Les Revers de la Médaille, exemplifica essas estruturas excludentes mostrando grandes blocos de cimento, que lembram legos, mas são extremamente densos e foram construídos em formatos que não permitem que pessoas deitem ou durmam em cima deles, dispostos em uma ponte às margens do canal Saint-Denis, nas imediações de zonas olímpicas. O especialista em direitos humanos também denunciou a instalação, nos últimos dias, de um bicicletário no espaço onde viviam cerca de 150 pessoas ao lado da zona de festividades dos Jogos Olímpicos no Parque de la Villette. Ele destaca que, embora muitas dessas pessoas sejam enviadas para abrigos, tais soluções de alojamento não são perenes e as vítimas dos esforços de limpeza social na região parisiense têm consciência de que podem voltar à situação de rua, o que fica explícito quando se observa os pertences pessoais e materiais como cobertas e colchões guardados ou escondidos nesses espaços.

Somada à exclusão arquitetônica, a ação da polícia é uma ferramenta fundamental para garantir a continuidade da limpeza social. Nos locais em que ocorrem as ações de desocupação, viaturas policiais ficam a postos vigiando os arredores com o intuito de evitar que as pessoas em situação de rua retornem. Quem não adere ao programa de realocação e opta por permanecer na região, precisa procurar formas de passar despercebido – para o Estado e o aparato policial, mas, principalmente, para turistas –, dispondo barracas atrás de moitas e evitando se expor e chamar atenção.

Apesar das varreduras, o número de pessoa em situação de rua de Paris sofreu um aumento de 16% no último ano, atingindo quase 3.500 pessoas de acordo com dados da prefeitura da cidade. Enquanto a polícia elimina um acampamento e retira dezenas de pessoas de uma localidade da cidade, outras dezenas de indivíduos se instalam em pontos diferentes e as políticas públicas de alojamento não alcançam de maneira efetiva esses grupos. Vindos notadamente do Sul Global, os refugiados sem abrigo da região são originários de países historicamente explorados pelo Norte, como Afeganistão, Chade, Etiópia e Sudão do Sul. Entre os menores de idade mais regularmente atendidos pelos Médicos do Mundo, destacam-se nacionalidades como Guiana e Costa do Marfim.

Legado olímpico

O que se vê na França, contudo, não é exclusivo do país. Ao redor do mundo, grandes eventos e festividades esportivas acabam atrelados a esforços para esconder a pobreza nas cidades. Fazendo uma breve retrospectiva, constata-se que situações similares ocorreram em Pequim em 2008, em Londres em 2012, assim como no Rio de Janeiro em 2016. E estratégias de exclusão social já estão previstas para Los Angeles 2028, com esforços da prefeitura para se inspirar em Paris para tentar reduzir o número de pessoas em situação de rua.

Cobrando da França um acolhimento digno para quem frequentemente vêm de territórios anteriormente colonizados e explorados pelo país, Alauzy e outros ativistas pedem a construção de um campo de refugiados oficial na cidade de Paris, o que permitiria ao Estado e às associações solidárias canalizar recursos e serviços para um único local designado com leitos suficientes para acomodar o fluxo de indivíduos sem abrigo. Cenário que a União Europeia recentemente mostrou que é viável, ao acolher rápida e massivamente refugiados da guerra da Ucrânia. Ocasião em que a França criou centros de serviços sociais exclusivos, alterou leis para permitir que ucranianos pudessem trabalhar legalmente no território nacional e destinou milhares de abrigos para receber o grupo.

Apesar do drama de falta de moradia para tantas pessoas que chegam à França ou que não conseguiram se estabelecer no país, a chama olímpica não apagou o sonho revolucionário de uma Paris tão inclusiva e com tetos e telhados acessíveis para todas e todos, tal qual as imagens de boas-vindas que a cidade mostrou ao mundo na cerimônia que, à beira do Sena, abriu os Jogos Olímpicos. A luta de ativistas de direitos humanos, como os membros do coletivo Les Revers de la Médaille, é para que a herança das Olimpíadas não seja de exclusão, mas, sim, de inclusão.