O machoesquerdista e o feministo pós-esquerda
Grupos historicamente silenciados e oprimidos estão ditando as pautas da resistência de esquerda. Uma nova esquerda está sendo construída, sim.
Quando nós feministas achávamos que um dos piores tipos com quem teríamos que lidar seriam os machesquerdistas, surge o feministo pós-esquerdista para nos mostrar que o fundo do poço é um conceito relativo.
Machoesquerdista é o homem que não abre mão de seu privilégio de gênero, além de costumeiramente se recusar a admitir seus privilégios. Normalmente, ele se afirma apoiador da luta das mulheres e não se priva da oportunidade de contar causos em que ele agiu heroicamente em defesa de alguma mulher.
Porém, recusa a importância política da ideia de lugar de fala, não faz a necessária reflexão autocrítica quando é acusado de machismo, acha que o lugar de fala implica cerceamento do seu direito de expressão (normalmente ele não é liberal, mas nesse ponto em especial ele faz questão de ser), que ele pode livremente protagonizar a luta ou o pensamento feminista [sic], não enxerga a si mesmo como opressor e, por último mas não menos importante, acusa as feministas de serem esquerda sectária e de promoverem a desagregação da luta de classes. Ele pode até falar sobre feminismo. Mas ele não ouve. E fica incomodado quando alguma feminista quer apontar seu privilégios de homem branco (dentre os quais está o de sempre poder falar e ser ouvido, sem ouvir).
Esse tipo de esquerdista não aprendeu nada sobre a luta feminista e sobre as pautas identitárias em geral.
Ele participa da luta política e discute todos os assuntos, inclusive feminismo, sem dividir equanimemente o trabalho doméstico, explorando o trabalho da companheira, da ex-companheira ou da mãe, vendo o filho a cada 15 dias quando divorciado, dando em cima das mulheres de forma inconveniente sem vislumbrar o assédio, se apropriando de ideias das colegas mulheres como se fossem suas, reforçando estereótipos de gênero machistas toda vez que seus interesses divergem ou confrontam com uma mulher e usando esses estereótipos para desqualificar as críticas que uma mulher lhe dirige. E tudo isso sem achar que essas práticas machistas estejam diretamente ligadas à sua militância política, tornando-a vazia, incoerente e hipócrita.
Na visão rasa do machoesquerdista, luta de classes e feminismo são assuntos distintos e que não se comunicam.
Como se a exploração do trabalho doméstico e de educação dos filhos não criasse um aspecto peculiar na exploração do trabalho remunerado da mulher, colocando-a em brutal condição de desigualdade, desigualdade essa da qual ele se aproveita para alçar melhores postos de trabalho e maior produtividade, pela maior disponibilidade de tempo para estudar e trabalhar, tempo esse roubado das mulheres que ele explora.
E então surge o outro tipo:
O feministo pós-esquerda. Esse cara leu Judith Butler e Angela Davis. Ele entende das pautas identitárias. Respeita lugar de fala. Além disso, é extremamente sensível à questão indígena e ambiental.
Mas não transversaliza nenhuma dessas pautas com a luta de classes ou com a luta anti-capitalista. Ele acha que a narrativa da luta de classes esgotou há muito seu paradigma. Não se identifica e não acredita na esquerda. Ele é pós-esquerdista. Está à procura de um discurso político que o seduza e contemple as opressões que ele visualiza e às quais é sensível.
É como se fossem necessários alguns ajustes no sistema, mas o sistema em si fosse defensável. Como se o sistema capitalista não fosse o epicentro de todas essas explorações e violências, identitárias e de classe.
O feministo pós-esquerdista é a semente de uma nova direita.
Uma direita politicamente correta, que não aplaude e nem dialoga com o discurso fascista, machista, homofóbico, transfóbico e racista. Mas tampouco aplaude ou dialoga com a luta sindical, a luta pela taxação da riqueza e pelo financiamento de direitos sociais e serviços públicos, a luta por mais direitos trabalhistas. Não enxerga que é nas precárias condições de trabalho marcadas por vulnerabilidades jurídicas e pela opressão econômica e também pela falta de acesso e pela precariedade dos serviços estatais de saúde, de educação e tantos outros que o machismo e o racismo encontram terreno fértil para sua reprodução e perpetuação.
Embora esses dois tipos pareçam antagônicos e inconciliáveis, a verdade é que eles são os dois lados da mesma moeda de manutenção do sistema.
Se dependermos de um, continuaremos nos sindicatos servindo cafezinho aos homens sindicalistas, cis e héteros, titulares de toda a voz. Se dependermos do outro, poderemos sempre discutir o machismo, a desigualdade de gênero, a desigualdade racial e denunciar privilégios de gênero e os privilégios de cor, desde que isso não implique denunciar a exploração do sistema capitalista.
Para os dois, o movimento feminista e as pautas identitárias não se relacionam diretamente com a organização da luta de classes. E é exatamente nisso que estão enganados.
Tão enganados que em todo o Brasil estamos assistindo ao protagonismo dos movimentos feministas e outros movimentos identitários na organização da resistência ao golpe, da resistência às reformas trabalhistas e previdenciária e na defesa dos direitos de liberdade e sociais.
Aliás, o que vimos na sexta-feira, dia 28 de abril, foi uma greve geral extremamente bem sucedida porque soube articular com êxito a organização sindical e partidária, de um lado, com movimentos sociais heterogêneos e a própria sociedade civil desorganizada.
Grupos historicamente silenciados e oprimidos estão ditando as pautas da resistência de esquerda. Uma nova esquerda está sendo construída, sim. Mas não uma pós-esquerda, que rejeita ícones tradicionais do esquerdismo, como a luta sindical e as bandeiras vermelhas.
Essa nova esquerda está entendendo que o movimento feminista, incluídos especialmente o feminismo negro e o transfeminismo, muito ao contrário de promover a segregação da esquerda ou de negar a esquerda, promove a complexidade da luta de classes, articulando-a com a luta contra outras formas de opressão, que foram por tanto tempo toleradas e silenciadas.