Por Ana Cecília Antunes

O dia 16 de junho é muito significativo para a África do Sul. Em 1976, o Levante de Soweto mudou o cenário sociopolítico do país. Milhares de estudantes da cidade protestaram contra um decreto que obrigava as escolas para alunos pretos a ensinar em africâner, língua originária da colonização holandesa de povos africanos. Os estudantes já vinham sofrendo com a precarização do ensino institucionalizada pelo Apartheid e não aceitavam ser ensinados no idioma do opressor. Enquanto marchavam de forma pacífica, a polícia os confrontou com bombas de gás lacrimogêneo e tiros. Mais de 500 pessoas morreram em decorrência desse embate. Essa brutalidade fez com que a revolta em oposição ao governo se espalhasse pela nação. 

Apesar de não ter havido Apartheid no Brasil, a herança escravocrata do país gerou uma grande desigualdade de acesso à educação com base na raça. De acordo com Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua), em 2023, mais da metade dos brasileiros negros com mais de 25 anos não havia concluído o ensino básico obrigatório. Em comparação, 38% das pessoas brancas não finalizaram os estudos. Hoje, a população sul-africana comemora o Dia Nacional da Juventude em homenagem àqueles que lutaram por um ensino de qualidade ao povo preto. É preciso que essa história seja sempre lembrada. Leia abaixo para entender:

Contexto histórico

A segregação da educação na África do Sul existia mesmo antes das eleições de 1948, que deram poder ao Partido Nacionalista. A educação dos brancos era gratuita e obrigatória, enquanto a dos negros era negligenciada. Falta de financiamento e aumento da população urbana resultaram na superlotação das escolas e na escassez de professores e materiais pedagógicos. Nessa época, 90% das escolas negras eram missionárias, auxiliadas pelo Estado.

Em 1953, a Lei de Educação Bantu retirou o controle das igrejas sobre as instituições de ensino e atribui ao governo do Apartheid. Quase todas as escolas missionárias fecharam. O sistema de Educação Bantu foi projetado para limitar os africanos aos papéis sociais de trabalhadores, operários e servos. Além disso, tinha como objetivo impedir que desenvolvessem críticas ao sistema. Mas aconteceu justamente o contrário. A fragilização proposital da educação se tornou o principal foco de resistência. 

O estopim para os protestos de 1976 foi o Decreto do Meio Africâner, emitido em 1974. A partir daquele momento, todas as escolas para negros seriam obrigadas a ensinar Matemática, Ciências Sociais e Geografia em africâner. Professores e alunos ficaram insatisfeitos. Membros da Associação Africana de Professores da África do Sul relataram não serem fluentes no idioma. Os estudantes se recusaram a aprender uma língua de colonizadores.  

O dia 16

Não é possível definir exatamente o que aconteceu naquele dia. Muitas informações são contraditórias, provenientes de testemunhas e jornalistas que presenciaram os acontecimentos. Segundo o site South African History Online, a passeata dos estudantes foi planejada pelo Comitê de Ação do Conselho Representativo dos Estudantes do Soweto (SSRC). Entre 3.000 e 10.000 alunos de Soweto marchavam calmamente. O objetivo era encerrar com uma assembleia no Estádio Orlando. 

Por volta de 1h30 depois do início da manifestação, o grupo foi avisado de que a polícia estava vindo. Os estudantes continuaram caminhando de forma organizada, até que um policial branco jogou uma bomba de gás lacrimogêneo na multidão. As pessoas recuaram, mas não pararam de cantar e sacudir os cartazes. De repente, outro policial atirou em Hastings Ndlovu, de 15 anos. Hector Pieterson tinha 12 anos e foi assassinado por um policial no conflito iniciado pelas autoridades. A foto de Pieterson, tirada por Sam Nzima, o transformou em um símbolo da luta contra o Apartheid.

A rua onde começou a violência policial recebeu nome de Hector Pieterson Square. Foto: Sam Nzima/South Photographs.

Veículos, edifícios e lojas foram incendiados. Mais alunos foram mortos pela polícia. A cada vez que era parada por policiais, a passeata mudava de rota. No fim do dia, grande parte de Soweto podia ver o impacto dos protestos. Dois dias depois, a mobilização já havia tomado inclusive municípios vizinhos. 

Consequências

Mais tarde naquele mesmo ano, o governo da África do Sul designou um único juiz para liderar uma comissão encarregada de registrar e analisar o Levante de Soweto. A Comissão Cillié – que tem esse nome por conta do juiz presidente Petrus Malan Cillié – constatou a morte de 575 pessoas resultantes da manifestação. No entanto, há uma crença geral de que esse número seria maior. Alguns dados podem ter sido omitidos para evitar prisões. A revolta se espalhou pelo país e aconteceu por mais um ano. A exposição da brutalidade do Apartheid fez a indignação popular atingir níveis internacionais. 

Mesmo após as primeiras eleições democráticas e a criação do Governo de Unidade Nacional, em 1994, as décadas de educação inferiorizada deixaram marcas no sistema educacional sul-africano. Todo 16 de Junho é comemorado o Dia da Juventude. Nesse feriado, são homenageadas pessoas que se tornaram figuras emblemáticas do protesto. De acordo com o site do governo da África do Sul, em 2023, foram enaltecidos Hector Pieterson, Hastings Ndlovu e Tebogo ‘Tsietsi’ Mashinini, presidente do Conselho Representativo dos Estudantes de Soweto (SSRC). Mashinini foi o homem mais procurado do país na época das manifestações. A polícia oferecia 500 rands para quem tivesse informações sobre seu paradeiro.