Por Kaio Phelipe

Nascida em 1947, Leila Míccolis atuou como advogada até abandonar a carreira para se dedicar integralmente à literatura. Em 1965, lançou seu primeiro livro, Gaveta da solidão. Doutora em teoria literária pela UFRJ, hoje é autora de dezenas de livros e roteiros. É coautora de novelas, como “Barriga de aluguel”, ao lado de Glória Perez. Leila foi repórter do “Lampião da esquina” e também atuou no Grupo Somos.

Conversamos sobre sua jornada na literatura (que inclui a obra “Jacarés e lobisomens”, em parceria com Herbert Daniel), o papel político da poesia, seu último lançamento, “Em poetisa todo mundo pisa” (Macabéa Edições), e os anos em importantes movimentos da comunidade LGBTQIAPN+.

Quando começou a escrever?

Fui considerada uma garota prodígio e animava programas infantis ao vivo no rádio e na televisão. Brinco dizendo que já nasci multimídia. Aos quatro anos, fiz minha primeira trova para o meu gato e minha mãe sempre me incentivou muito, ela escrevia muito bem. Aos nove anos, ganhei meu primeiro concurso literário sobre a temática indígena. Aí tomei gosto e não parei mais.

O que foi a Geração Mimeógrafo?

Tenho um livro inteiro sobre a poesia publicada nos anos 1970 e meu mestrado, doutorado e pós-doutorado na UFRJ também versaram sobre esse tema. É muito difícil falar em poucas palavras o que foi a geração mimeógrafo, mas vou tentar: a poesia de mimeógrafo foi constituída pela primeira leva de poetas da geração poética dos anos 1970. Eles participavam do processo inteiro da editoração de seus livros, que eram, em geral, vendidos de mão em mão, na entrada dos teatros, saída dos cinemas, nos bares, universidades, rodoviárias e lanchonetes. Era o jeito de veicular o que se escrevia, pois as livrarias eram constantemente invadidas e isso fazia com que os donos temessem dar oportunidade para uma poesia nada convencional.

Como foi escrever para o Lampião da Esquina?

Essa era uma das minhas múltiplas atividades da época. Eu já escrevia para alguns jornais da imprensa alternativa e, no Lampião, eu era repórter, a única mulher fixa (incluída nos expedientes do jornal, inclusive). O tempo era de muita inquietação, lutava-se de todas as maneiras pela redemocratização do país. “Comia-se pelas beiradas”, para usar uma expressão da época. Conheci muita gente incrível fazendo essas reportagens. Conheci o Manuel Puig, um prestigiado autor argentino, que escreveu ‘O beijo da mulher aranha’, um livro muito famoso na época aqui no Brasil – o romance havia sido adaptado para o teatro e estava em cartaz, o Puig estava no Rio de Janeiro justamente para assistir a versão brasileira da peça.

Como foi sua experiência no Grupo Somos?

Como disse na resposta anterior, minha função era fazer reportagens e entrevistas. Então eu cobria não apenas atividades dos grupos homossexuais, como também dos movimentos feministas e de núcleos contra o racismo. Eu participava, às vezes, até em mesas de debates, de manifestações diversas de grupos e pessoas preconceituosamente estigmatizadas. Ouvíamos respeitosamente todos que não se enquadravam nos padrões convencionais e que não tinham espaço para denunciar perseguições ou exercerem liberdade de expressão. Porém, foi um começo um tanto caótico. Pessoalmente, eu gostava desses movimentos, dessa polifonia de vozes que driblavam – mesmo que em pequeno grau – a pequena feroz do governo de exceção. Em tempos de TFP (Tradição, Família e Propriedade), as meninas do GALF (Grupo de Atuação Lésbico-Feminista) tiveram muita coragem. Até hoje tenho grande admiração por elas e fiz amigas maravilhosas.

Como foi publicar um livro com Herbert Daniel?

Herbert foi um dos meus parceiros literários mais incríveis, estávamos alinhados com as propostas ideológicas um do outro: ser contra classificações, etiquetagens e rótulos estereotipados, que serviam mais para nutrir separatismo do que para integrar pessoas. Em relação à repercussão do nosso livro, nós dois e o editor Achiamé sabíamos que não seria grande, já que nosso posicionamento não era brincalhão igual ao da maioria de ativistas, habituados a aceitarem, e até quererem, um tratamento mais leve. Nosso livro é denso. Queríamos falar sério, mesmo que com humor. Então, quem não atirou pedra, engoliu nosso livro a seco. Foram poucos os críticos que ousaram escrever resenhas a favor. Em poucas palavras: não houve segunda edição.

Pode nos contar um pouco sobre a obra Em poetisa todo mundo pisa, lançada pela Macabéa Edições?

É meu mais recente livro de poesia (publicado em 2023), que continua polêmico até hoje. Pelo título, já é possível perceber que escancaro minha perplexidade diante do fato das mulheres ainda preferirem ser chamadas de poetas, evitando o uso do feminino, pois poetisa passou a ter, desde o começo do século passado, uma conotação pejorativa. Mas, da belle époque para cá, muita água rolou e não vejo motivo, em tempos de inclusão, excluirmos o gênero feminino do nosso idioma. Poeta não é vocábulo comum aos dois gêneros, assim como não é “médico”, por exemplo – não me apresento como advogado, professor ou escritor. Então, sempre que uma poetisa se vangloria de ser poeta, me vem à mente a música do Belchior, será que, realmente, “apesar de termos feito tudo o que fizemos, ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais?”.

Quando irá lançar seu próximo livro?

Quando abandonei dez anos de advocacia trabalhista para escrever/ler em tempo integral e sobreviver do que escrevo – verdadeira epopeia, já que no Brasil escritor não é profissão legalizada –, lido sempre com vários projetos ao mesmo tempo (roteiro de televisão, poesia, prosa, debates, monitoramentos literários), trafego em várias áreas simultaneamente. Este ano, resolvi me dedicar a projetos maiores, que sempre adiei. Espero conseguir cumprir a minha meta. Quanto ao próximo livro, já há uma editora interessada em publicar meu original sobre a descoberta dandista de mulheres brasileiras, uma adaptação do meu ensaio de pós-doutorado na UFRJ. Então espero que essa minha obra em prosa saia até o final do ano. Tomara!

Toda poesia é política?

Sim. Toda poesia é social porque é um diálogo com o outro. Vou além: seja optar pelo veganismo, praticar esportes, ir à praia, comprar pela internet, xingar no trânsito, ver filmes ou novelas, ler um livro, fazer sexo ou semear poesia, todo ato, por mais trivial que seja, envolve a política do corpo e o direito à ternura.