O que a mudança na lei das drogas afeta em sua vida?
Especialistas alertam para retorno do modelo manicomial e do agravamento do encarceramento em massa.
No último dia 16/05 o Senado aprovou mudanças na Lei de Drogas, em meio à uma semana conturbada com manifestações em todo o país contra os cortes na educação pública. Desapercebido pela opinião pública e ignorado pela grande mídia, a decisão do Congresso terá grandes impactos na vida da população, principalmente no campo da segurança pública, saúde e assistência social.
As alterações mais importantes do Projeto de Lei Complementar, de autoria do atual Ministro da Cidadania, Osmar Terra, são o fortalecimento das comunidades terapêuticas e do modelo de abstinência, e o aumento da pena de tráfico de drogas de 4 para 6 anos.
O texto aprovado pela maioria dos congressistas tramitava há quase 9 anos, e foi resgatada às pressas para endurecer a legislação antes do STF julgar a possível descriminalização do usuário de drogas no Brasil, que acontece no próximo dia 05/06.
Encarceramento em massa
O Brasil possui a terceira maior população carcerária do mundo, atrás apenas de China e Estados Unidos, com 720 mil pessoas encarceradas, sendo que cerca de 1 terço delas respondem por tráfico de drogas. Neste cenário, o aumento de pena para traficantes torna-se um catalisador deste processo.
O movimento do congresso de se antecipar ao STF e criar mecanismos para evitar qualquer tipo de reversão do encarceramento em massa, mostra que há um compromisso deles em estabelecer bases para o fortalecimento dessa agenda, conservadora e populista.
“Uma lei, quando é aprovada, vem para consolidar um apelo que já é um pensamento de parte da sociedade. O que já acontece na prática é que a polícia prende pequenos traficantes com pequenas quantidades de drogas, 70% dos casos só tem como única testemunha o policial. Com essa lei o que temos é mais uma legitimação do estado para que a polícia continue agindo de maneira arbitrária”, explica Nathália Oliveira, Coordenadora da Iniciativa Negra por uma Nova Política de Drogas (INNPD).
A descriminalização do porte de drogas, que poderia amenizar esse problema, no entanto, não tem esse poder. Como o julgamento refere-se somente ao usuário e o aumento da pena foi para traficante, não há como uma coisa anular a outra. Além disso, em territórios marginalizados como periferias e subúrbios, a letra da lei passa longe da realidade vivida.
“O que acontece é que se você muda e descriminaliza uma conduta, mas não aumenta o controle social e fiscalização sobre as ações das forças de segurança pública, nada muda”, pontua a especialista.
Modelo manicomial e redução de danos
A nova lei dá protagonismo para o modelo de abstinência no cuidado com usuários de drogas, ou seja, em que não há consumo de drogas e as pessoas são retiradas do convívio social para o tratamento. Já a política de redução de danos, em que admite-se o consumo de drogas durante a recuperação, não foi sequer mencionada e deixa de ser adotada como política pública do governo federal.
Com isso, saem ganhando as comunidades terapêuticas e clínicas de internação, que entraram no SISNAD (Sistema Nacional de Políticas Públicas de Drogas) e passam a ser consideradas pessoas jurídicas, sem fins lucrativos, a fim de que possam receber mais doações, conforme justificou o relator do projeto, o senador Styvenson Valentim (Podemos/RN).
Semelhante ao modelo manicomial superado pelo Brasil há quase 30 anos, com o crescimento da luta antimanicomial em todo o mundo, retomamos essa agenda sob a batuta de Osmar Terra, ministro nos governos Temer e Bolsonaro, e principal articulador dessas mudanças, que vão em consonância com suas ações no executivo.
“Existem relatórios que apontam como uma parte significativa das comunidades terapêuticas sistematicamente violam os direitos humanos dessas pessoas. As pessoas são retiradas do seu ambiente social, colocadas nesses espaços, ficam ali por um tempo e depois são jogadas uma realidade totalmente desigual, permeada pelo racismo e sexismo, que vai empurrá-las de novo para uma situação de vulnerabilidade”, relata o Pedro Borges, do portal de mídia negra Alma Preta.
Pessoas em situação de rua nas cenas de uso conhecidas como Cracolândias tornam-se alvo dessa política, que passa a prevê internação compulsória em caso de aprovação da família ou judicial, sujeito à liberação somente sob alta do responsável médico.
“As pessoas que estão em situação de rua e Cracolândia, o risco de ser internado involuntariamente ou compulsoriamente aumenta significamente. Essa nova política acredita que só abstinência é possível e se a pessoa não quer ser cuidada ou não quer parar de fazer uso, tem que ser internada, porque são considerados sem capacidade de fazer escolhas. Isso está completamente errado”, afirma Logan.
Por trás do predomínio das comunidades terapêuticas no plano governamental, há um série de interesses econômicos de grupos que enxergam uma oportunidade de faturar com o higienismo social. Alvo de uma série de controvérsias, o orçamento chegou ao seu maior nível com Bolsonaro, que destinou 153 milhões a esses entidades, em sua maioria pertencente à líderes religiosos.
Votação no STF
Previsto para o próximo dia 05/06, o julgamento caminha em direção da descriminalização do usuário. Três dos juízes já votaram a favor da causa, no entanto a definição foi adiada há 4 anos, pelo então ministro Teori Zavaski, que pediu vista do processo, mas veio a faleceu em acidente em 2017. Seu substituto, o ministro Alexandre de Morais devolveu o projeto no final de 2018, para então finalmente vir a ter uma conclusão.
A expectativa é que a maioria da corte decida pelo menos pela descriminalização do porte de uma droga, que seria a maconha, obrigando o Congresso Nacional a definir uma quantidade mínima que separe usuário de traficante na legislação. No entanto, não é possível entender com clareza se é a constituição ou o público conservador que dá as cartas nas decisões do STF, dessa forma é imprevisível qual será a decisão.