La Vida Es Libre: entrevistamos Luís Capucho
Artista lendário nascido em Cachoeiro de Itapemirim (ES), Luís Capucho é cantor, compositor, escritor e pintor
Por Kaio Phelipe
Artista lendário nascido em Cachoeiro de Itapemirim (ES), Luís Capucho é cantor, compositor, escritor e pintor. É autor dos livros Cartas Para o Edil, Diário da Piscina, Mamãe Me Adora, Rato e Cinema Orly; e dos discos Lua Singela, Cinema Íris, Antigo, Poema Maldito, Crocodilo e La Vida Es Libre. Teve suas composições gravadas por intérpretes como Cássia Eller e Ney Matogrosso, e, recentemente, suas obras inspiraram o premiado documentário Peixe Abissal, de Rafael Saar, e o espetáculo teatral Cinema Orly, com o ator Teo Pasquini.
A música foi a sua primeira experiência trabalhando com arte? Quando surgiu a ideia de escrever um livro?
Eu comecei a tocar com 22 ou 23 anos, quando a minha mãe recebeu um violão de pagamento pelo trabalho dela. Aí eu tinha alguns amigos que tocavam, mas eu não era bom. E agora meus dedos não são ágeis. Por exemplo, depois da minha sequela, não consigo mais fazer pestana. No início, tive dificuldade com a pestana, demorei um ano para aprender. Insisti muito porque o som que eu conseguia tirar no violão era tão emocionante. Como eu tinha dificuldade de tocar as músicas dos outros, já que eu não tinha talento, eu comecei a fazer minhas próprias músicas. Eu fazia com uma ou duas notas. Quando eu mostrava para os meus amigos, via que as minhas letras não estavam dentro da expectativa do que era uma música. Era uma coisa esquisita. Eu tinha vários amigos que eram bons fazendo letras. O Marcos Sacramento, a Mathilda Kovak, a Suely Mesquita, então comecei a pegar as letras deles. E eu achava que o importante da música era a letra. De vez em quando e aos poucos eu conseguia fazer uma letra boa, aceitável. Então começou assim, sempre em parceria. Não tinha uma coisa de escritor, com a literatura das letras. Mas quando era pré-adolescente, foi a época que mais li livros. Eu era um rato de biblioteca e ia pegando todos os livros que eu achava que eram infantis e ia devorando todos. Teve uma vez que eu peguei o livro Menino de Engenho (José Lins do Rego), achando que seria uma história como as do Monteiro Lobato. Só que era uma leitura diferente do que eu estava acostumado. Me lembro de algumas cenas até hoje, de algumas cenas na fazenda, na cozinha. Foi um baque pegar aquele livro e não ser infantil, era diferente da minha imaginação. Isso é para dizer que a minha proximidade com a literatura vem antes da minha intimidade com a música. Eu era mais rato de livro do que de música na adolescência. E eu também estudei Letras. Mas achei que fosse escrever um livro só quando estivesse velhinho, com bastante experiência e prestes a morrer. Na adolescência, eu tinha feito um livro. Eu não conheci meus avós. Dos meus ancestrais, minha mãe foi a única que conheci e não tem documento, foto nem nada sobre quem veio antes e essa é uma queixa minha. Então, quando eu era adolescente, eu queria saber e fazia entrevistas com a minha mãe. Lembro da minha mãe estar na cozinha e nessa época ela trabalhava em um hotel. A gente tinha um quarto no hotel e morávamos lá. Todo dia ela fazia o almoço e eu ia para o lado dela, com um caderninho e fazia uma entrevista sobre a infância dela e, depois, ia arrumando tudo em uma história. Teve um dia que não sei o que me deu. Esse quarto no hotel dava para um beco, era um vão entre dois prédios, em Cachoeiro de Itapemirim. Não sei porquê fiz isso, mas peguei o caderninho e cortei tudo em pedaços minúsculos, tudo picotadinho e joguei na janela. Também tive outro caderno. Dessa vez, minha mãe trabalhava em um seminário. Alguns padres italianos construíram uma escola no alto do morro, em uma cidade chamada Jerônimo Monteiro (ES). Quando eu tinha 8 anos, minha mãe e eu fomos morar lá. A gente tinha um quarto também. A noite, depois de minha mãe ter trabalhado, a gente sentava em um banquinho em frente à igreja e eu pedia para ela me ditar os versinhos que ela sabia. Aqueles versinhos tipo “em cima daquele morro passa boi, passa boiada”, sabe? Eu não sei o nome disso, são uns versos pequenininhos, bonitinhos. A minha mãe sabia um monte e eu anotava o que ela dizia. Sinto pena de não ter guardado. Acabei perdendo esse caderno nas mudanças. Então eu tenho uma relação com a literatura que é muito antiga. Mas da adolescência até os 30 anos, eu fazia só música. Escrevia só porque gostava de escrever. E aí quando entrei em coma e tive sequelas, eu não podia tocar. As sequelas eram motoras e atingiram também a motricidade da língua. Então eu não falava direito nem tocava. Aí comecei a escrever o Cinema Orly, que foi um rock que eu fiz na literatura. Depois eu voltei com a música, mas já não tinha mais a sutileza de antes. Eu não conseguia dedilhar, não conseguia fazer os acordes. A pestana eu nunca mais voltei a fazer. Comecei a bater no violão e agora acho que cheguei em um ponto e juntei as duas coisas: eu meio que bato o violão e dedilho. Não consigo manter o compasso por tanto tempo.
Recentemente, Cinema Orly foi traduzido para o espanhol. Como foi o processo de publicação?
Há um tempo, o Tive Martínez, que é um poeta espanhol e que adora música brasileira, viu que eu existia e começou a falar comigo. Assim que ele ficou sabendo sobre o livro Cinema Orly, ele quis fazer uma tradução. Tinha uma questão que lembro, era como faria para traduzir para o espanhol alguns termos do jargão gay, que existe no livro. Daí ele quis saber exatamente o que significava cada gíria para saber o correspondente em espanhol, mas acredito que o livro não é para todos que entendem o idioma. Por exemplo, na Argentina deve haver outras traduções para o jargão gay do livro. Então é uma tradução espanhola. Inicialmente, o Tive não achou uma editora e fez os livros de acordo com a demanda. Depois, o selo editorial La Abaporu, que é um braço da Editora Urutau na Espanha, fez uma tiragem.
Também foi lançado um disco com versões de suas músicas em outros idiomas, certo?
O Tive Martínez tinha me conhecido por conta das músicas e me disse que queria me fazer uma surpresa. Ele traduziu algumas de minhas músicas para o espanhol e mostrou para seus amigos artistas espanhóis e alguns amigos americanos. O contato com os amigos americanos vingou: Nehedar e Bob Gaulke produziram La Vida Es Libre e Love’s Slutty, mas os artistas espanhóis não fizeram nada. Então deixou de ser surpresa, porque ele me pediu ajuda para produzir as outras versões. Eu e Bruno Cosentino convidamos Luiza Brina, Gustavo Galo, Arthur Nogueira, Lucia Santalices, Luis Augusto, Reverendo T e os Discípulos Descrentes, Gabriel Edé, Julia Rocha, Mathieu Evellard e o álbum saiu pelo selo Porangareté. Serão dois volumes e o primeiro já saiu. Ainda não sei exatamente quando o segundo volume vai sair.
Como foi gravar Aula, uma letra do Cazuza?
O Rafael Julião, que é um professor da UFRJ e meu amigo, fez um livro sobre as letras do Cazuza. O livro se chama Segredos de Liquidificador. Tinha algumas letras e poemas do Cazuza que não tinham música. Aí o Rafael Julião disse “olha, essa letra não tem música e parece contigo”. Eu acho que não parece, mas achei bonita e eu fiz uma versão meio folclórica. É a lembrança de um homem que tinha uma ideia da época dele e que está ensinando como são as coisas para um garotinho. Eu estou gravando um disco com o Bruno Cosentino que vai se chamar A Questão É e a gente colocou essa música no repertório. Tem uma publicação caseira no YouTube, mas também vai ter uma versão de estúdio comigo e Bruno.
Então, em breve, virão mais dois discos?
Existe, ainda, um terceiro álbum. Como não tenho dinheiro para investir na minha produção, acabo deixando as coisas à deriva. Há um tempo atrás, fui tirar umas fotos com a Ana Rovati, que é uma amiga do Bruno Cosentino, e, no meio da sessão de fotos, eu tinha uma música nova e mostrei para ele. A gente começou a conversar e, no final, combinamos que o Bruno produziria um disco para mim, com o nome daquela música, que é Homens Machucados. A gente fez uma banda e gravamos ao vivo. Normalmente, em um disco, os instrumentos são gravados separadamente e colocados um por vez, aos poucos. A gente resolveu gravar o disco tocando todo mundo ao mesmo tempo e eu cantando. A gente gravou, mas eu achei horrível. Nossa, ficou uma coisa muito horrível. Aí o projeto ficou parado. Há pouco tempo, esse disco voltou à tona, porque nele tem a música Cinema Orly. A Editora Carambaia, uma editora de São Paulo, fez uma edição do livro Cinema Orly super bonita, de capa dura, bem chique. É uma coleção de clássicos eróticos que o Cinema Orly está abrindo junto do Rosa Mística, livro da escritora uruguaia Marosa de Giorgio, uma edição clássica em uma coleção erótica chamada Sete Chaves, com curadoria de Eliane Robert de Moraes. Fiquei muito orgulhoso dessa edição. Apesar que também sou muito orgulhoso da primeira edição com as ilustrações. E aí, com a publicação do livro, a gente queria usar a música no mesmo momento, que também coincidiu com a peça, do Teo Pasquini e inspirada no livro, que estava em cartaz no Teatro Glaucio Gill. A gente tirou a música do disco e ela foi lançada pela Stone Music. Nisso, ouvi o disco de novo e, dessa vez, achei ótimo. Tudo que eu tinha achado horrível era o que tornava ele singular. Vai ser um disco mal falado, na minha opinião, porque é um disco ruim. Mas o ruim dele é o bom e eu fiquei muito animado. Por enquanto, é um álbum que está à deriva, mas vai ser um trabalho que tem tudo a ver comigo, com a minha estética, que não é uma estética padrão. Vai ser um álbum esquisito, uma coisa estranha. Já tem tanto tempo que eu sou estranho, que a minha estranheza está se tornando normal. Quando eu tiver uma grana, vou terminar e vou lançar. Dentro dos meus discos, esse vai ter uma importância, é o registro de uma época.
A gente consegue ver sua relação com os diários no Blog Azul e no Diário da Piscina.
O Blog Azul, na verdade, se chamava Blog Rosa, no início dos anos 2000. Foi um blog que a Suely Mesquita e a Mathilda fizeram durante um projeto que foi executado no Sesc Copacabana, que eram vários shows. Durou dois ou três meses. Na verdade, não lembro ao certo se o blog era Blog Rosa ou Bolsa Nova, mas a identidade visual era toda rosa e foi criado para as participantes realizarem a divulgação dos shows. Tinham três homens nesse projeto de mulheres: Marcos Sacramento, Glauco Lourenço e eu. Fizemos um show que se chamava Homens de Peito. Quando os shows acabaram, as postagens foram rareando. Eu era o único que continuava postando, independente de música. Postava qualquer coisa. Aí a Suely me deu o blog, já que não tinha mais utilidade para elas. Aí comecei a escrever muito e chamei de Blog Azul. Durante muitos anos, eu escrevia quase todos os dias. Agora tem ficado um pouco abandonado. Tem tanto lugar para escrever: Facebook, Instagram, Twitter… Só de vez em quando publico alguma coisa no Blog Azul. Ele está vivo, mas não assíduo. Antigamente, eu escrevia como um diário. Agora não. E sobre o Diário da Piscina, eu acho o meu melhor livro. Viajei muito com ele, fui para três cidades da Bahia, três cidades do Pará, uma cidade do Mato Grosso do Sul e três cidades de Santa Catarina para falar dele. E eu tenho problema em falar, sou ruim falando. Fiquei um tempão me preparando e pensando no que ia falar sobre os meus livros, mas acabei me saindo bem. Consegui manter falas de vinte minutos, meia hora. Eu escrevi Diário da Piscina logo após de Cinema Orly. Quando escrevi Cinema Orly, eu ainda estava bem fudido, não estava nadando. Depois, ganhei uma bolsa de natação. Estou nadando até hoje e estou melhorando até hoje. Minha voz acabou melhorando também. Eu imaginava que só a coordenação motora do corpo fosse ficar boa, mas a natação melhorou a minha respiração. Comecei a falar melhor por conta disso. Sempre digo que o Cinema Orly foi meu exercício de reconstrução do meu movimento interno, mental e emocional. Exercitei essa volta com o Cinema Orly. Diário da Piscina foi o exercício de voltar fisicamente. Mas os dois são da mesma época, são livros de recuperação.
Como foram as gravações do documentário Peixe Abissal, de Rafael Saar?
Eu ando ficando meio doido com um monte de coisas ao mesmo tempo. Filme, peça, disco, livro. Isso meio que me coloca em outra posição artística, como se eu tivesse subido um degrau, mas não sei para qual direção. Acho que não estou sabendo lidar muito com isso. Fico com a ânsia de entender o sentido disso tudo. Parece que tudo é sobre um Luís que não existe mais. Eu vou fazer 62 anos em março e isso é uma coisa impressionante. Achava que eu não fosse passar dos 40 anos. Eu estou muito chocado. Fico muito chocado com o lance do corpo. É como se fosse uma adolescência ao revés. Um corpo adolescente começa a ganhar as coisas e fica tudo diferente. Um corpo aos 60 começa a perder e tudo fica diferente também. Isso me impressiona muito. O corpo é foda. Eu tinha que ter aprendido isso quando tive o coma, que me destruiu fisicamente, mas eu não aprendi. Eu não podia fazer as coisas, mas eu tinha energia. Agora tudo parece mais real. O corpo vai se debilitando e você não tem força. Quer dizer, você tem força e exerce ela, mas não é a mesma coisa. É uma força frágil. Então é chocante. Tem gente que começa a sentir isso mais tarde. Mas eu já sinto agora, já comecei a sentir. Eu estou em outro momento, eu estou falando contigo aqui. Não estou mais no Cinema Orly e eu jamais poderia escrever o Cinema Orly outra vez. Não existe mais aquela emoção. As músicas também são antigas. Não é meu lance agora. Eu não estou fazendo música nenhuma. Até tem uma que estou batucando há um tempão e não sai nada. Eu estou em um momento que não é o momento desses trabalhos que estão ganhando território. E é como se eu estivesse ficando para trás. Como se essas coisas estivessem rolando e eu ficando parado, indo para trás, envelhecendo. E os trabalhos antigos triunfando. Eu devia estar super feliz, maravilhado. Mas eu fico tenso, preocupado, parece que são coisas que não se correspondem. Parece que não tem correspondência entre mim e a peça Cinema Orly, entre mim e o livro. Talvez eu me sentisse mais contemporâneo, mais junto, se eu conseguisse investir em uma banda e agendar shows em vários lugares. A minha música é estranha e eu sou estranho, mas eu adoro. Eu adoro cantar. Eu morro de timidez, mas eu adoro. Então isso faria eu me sentir, assim, vivendo em meu tempo. Eu curto o fato de existir um filme inspirado nos meus livros e nas minhas músicas e ele já ganhou três prêmios: menção honrosa do júri, melhor direção e melhor documentário. Mas tudo parece distante de mim.
Existe algo que ainda deseja realizar profissionalmente?
Olha, eu estou fazendo um livro, mas eu estou me cobrando muito. Aí eu fico demorando para achar que ele está pronto. Estou me empenhando nele. Se bem que eu acho que as coisas estão prontas ou não. Por exemplo, quando fiz 50 anos, achava que já tinha vivido demais. Agora estou na casa dos 60. Ao mesmo tempo que já vivi muito, ainda tenho tempo. Essa é uma pergunta difícil. Não sei responder se vou fazer uma próxima música. Tem artista que tem certeza que vai fazer. Eu não tenho certeza de nada, se vou fazer ou não fazer. Eu estou elaborando um livro, mas não sei se vou chegar ao fim. Também tem uma música que estou batucando, mas não sei. Só sei mesmo depois que está pronto porque aí já saiu, Você fez uma pergunta difícil.
É possível ouvir o álbum La Vida Es Libre clicando aqui.