Por Junyander

A 97ª edição do Oscar, que ocorreu no último domingo (2/3), representou um marco para os povos originários. Em quase 100 anos de história, o diretor canadense Julian Brave NoiseCat se tornou o primeiro cineasta indígena indicado à premiação. Ao lado da codiretora Emily Kassie e do produtor Kellen Quinn, ele concorreu na categoria de Melhor Documentário pela codireção do filme “Sugarcane” (2024), disputando a estatueta com “Guerra da Porcelana”“Diários da Caixa Preta”“Trilha Sonora para um Golpe de Estado” e “Sem Chão” (todos de 2024). Este último venceu o prêmio, mas a participação de Julian foi motivo de celebração.

Em um artigo para o jornal estadunidense The New York Times, no sábado (1º/3), o codiretor de “Sugarcane” comentou a indicação, dizendo:

“Durante a maior parte da história da América do Norte, os povos indígenas viveram sob uma forma devastadora de autoritarismo (…). Através das escolas residenciais, fomos até privados do direito de criar os nossos próprios filhos. Mas essas escolas falharam. E os povos indígenas ainda estão aqui.” – Julian Brave NoiseCat, ao The New York Times

LEGENDA 2: Julian Brave NoiseCat, codiretor de “Sugarcane”.Foto: Emily Kassie/Divulgação.

De fato, estão. De acordo com os dados oficiais dos censos demográficos mais recentes dos países da região, a população indígena da América do Norte é de cerca de 32,4 milhões de pessoas. No Canadá, terra de Julian, cerca de 1,8 milhão de cidadãos se identificam como nativos (5% da população total do país). No vizinho Estados Unidos, os indígenas somam 7,4 milhões de indivíduos (mais de 2% da população). Já no México, país com a maior população indígena das Américas, os povos originários chegam a 23,2 milhões de pessoas (19,4% da população). A título de comparação, no Brasil, de acordo com o IBGE, os povos originários são quase 1,7 milhão de pessoas (0,83% da população).

Apesar desses números, a representação indígena no cinema ainda é extremamente baixa. Segundo um estudo divulgado em 2023, menos de 0,25% do total de personagens era de pessoas nativas entre 2007 e 2022. A pesquisa foi realizada pela Iniciativa de Inclusão Annenberg da Faculdade de Comunicação e Jornalismo da Universidade do Sul da Califórnia (USC Annenberg), que analisou os 1.600 filmes mais populares do período. De acordo com a pesquisa, a representação indígena não chegou a ultrapassar nem 1% em nenhum dos 16 anos pesquisados. Ainda mais grave: apenas um filme foi protagonizado por um ator nativo.

Tais marcas ajudam a entender a relevância da presença de Julian entre os indicados ao Oscar 2025, independentemente do resultado. O cineasta canadense compareceu ao tapete vermelho acompanhado de sua família e amigos, todos envolvidos na produção de “Sugarcane”. O longa registra as investigações reais sobre a traumática experiência de crianças indígenas forçadas a frequentar um internato católico no Canadá, na reserva que empresta seu nome à obra. O pai e a tia de Julian, que também estavam presentes na cerimônia, foram vítimas do colégio missionário filmado no documentário. O filme retrata, portanto, a história dos indígenas na visão dos próprios indígenas e tem um significado pessoal para o codiretor.

Jornalista prestigiado, essa não é a primeira vez que Julian se dedica a temas sobre grupos sub-representados. Com passagens por veículos importantes dos Estados Unidos, como The New York TimesThe Washington Post e The New Yorker, ele foi condecorado, em 2022, com o Prêmio de Jornalismo Mosaico Americano da Fundação Heising-Simons (EUA), dedicada a questões de educação, direitos humanos e sustentabilidade. Esse prêmio reconhece a excelência de jornalistas freelancers que se dedicam a matérias aprofundadas sobre grupos marginalizados, como a reportagem “Pais indígenas tiram lições de sua própria experiência para criar estilos de vida saudáveis para seus filhos”, produzida por Julian para a revista estadunidense National Geographic. Isso abriu caminho para que ele fosse convidado pela cineasta e jornalista canadense Emily Kassie para filmarem o longa “Sugarcane”.

Julian Brave NoiseCat, Emily Kassie e o produtor Kellen Quinn. Foto: AP Photo/Jae C. Hong

Emily e Julian haviam trabalhado juntos na redação do jornal estadunidense The Huffington Post no início da carreira. A ideia de registrar as pesquisas na reserva Sugarcane partiu da própria Emily, mas não por acaso: em todo o Canadá, nações indígenas investigavam, por conta própria, os crimes cometidos contra seus membros no antigo sistema de doutrinação administrado pela Igreja Católica e financiado pelo governo. Ela passou a acompanhar os preparativos para as investigações no colégio interno de Sugarcane, a cargo da Primeira Nação de Williams Lake, povo indígena local. Decidiu convidar, então, seu antigo colega para produzirem um documentário a respeito. Inicialmente, ele hesitou, mas, para a surpresa de ambos, o internato de Sugarcane era o mesmo local para onde o pai e a tia de Julian haviam sido enviados quando crianças. E foi assim que nasceu o documentário indicado ao Oscar, com uma abordagem histórica e, ao mesmo tempo, pessoal.

Julian pertence à comunidade indígena Canim Lake Band Tsq’escen, da Nação Secwepemc, na província de Colúmbia Britânica, oeste canadense. Ele também descende da Nação Lil’Wat, do interior do país. Tem sido um importante ativista em defesa das narrativas indígenas na América do Norte, reconhecido pelos mais distintos prêmios do campo jornalístico, como o National Native Media Awards, da Associação dos Jornalistas Nativos Americanos (NAJA), e o National Magazine Award, da Sociedade Americana de Editores de Revistas e da Universidade Columbia. Em 2021, apareceu na lista “Time 100 Next”, da revista estadunidense Time, que reconhece as lideranças em ascensão em todo o mundo anualmente. Além de cineasta e jornalista premiado, Julian estuda arte e história do povo indígena Salish e está prestes a publicar seu primeiro livro, “We Survived the Night” (“Nós sobrevivemos à noite”, em tradução livre), pela editora Penguin Random House.

Apesar de rara, a presença indígena no Oscar não se limita à participação de Julian. No passado, outros artistas indígenas foram indicados à premiação, como Jocelyne Lagarde, Dan George e Graham Greene. Mais recentemente, Yalitza Aparicio, Lily Gladstone e Scott George receberam suas indicações. Em 2019, a Academia reconheceu o trabalho de toda uma vida de Wes Studi com um Oscar honorário. E, além de nativos, artistas com ascendência indígena direta também já representaram os povos originários na premiação, como Keisha Castle-Hughes e Taika Waititi, que tem sido um importante aliado na valorização da herança indígena no cinema.

Scott George e a Nação Osage no Oscar 2024. Foto: ECHO REED/Osage News

Após a cerimônia de domingo, Julian declarou, em um post na conta oficial do documentário no Instagram: “Esta indústria, assim como esta sociedade, foi construída contando histórias sobre índios morrendo sob a mira de armas de cowboys. Não mais.”

Texto produzido em colaboração a partir da Comunidade Cine NINJA. Seu conteúdo não expressa, necessariamente, a opinião oficial da Cine NINJA ou Mídia NINJA.