
Judith Butler: “Trump está extravasando sadismo sobre o mundo, mas não podemos nos deixar abater”
As pessoas que celebram sua fúria e sadismo são tão capturados por sua lógica quanto aqueles que estão paralisados de indignação.
À medida em que Trump anuncia uma série de ordens executivas e pronunciamentos públicos devastadores e terríveis todos os dias, nunca foi tão importante não ser capturades por sua obscenidade e concentrar atenção sobre como as questões estão interconectadas.
À medida em que novas obscenidades inundam o ciclo das notícias, é fácil esquecer ou não dar atenção às ordens executivas da semana anterior- proibições de programas e discursos de diversidade, equidade e inclusão (DEI), bem como da “ideologia de gênero” em todos os programas financiados pelo governo federal. Ameaças de deportação para estudantes internacionais que se envolverem em protestos legítimos; projetos expansionistas relativos ao Panamá e à Groenlândia e propostas de tomar em mãos o deslocamento total e forçado dos palestinos de suas terras em Gaza são anunciados em rápida sucessão. Em cada caso, Trump faz declarações que são demonstrações de poder, testando para ver se as medidas podem ou não entrar em vigor. As ordens executivas poderão ser suspendidas pelos tribunais, mas a deportação de imigrantes já começou, e foram reabertos os grotescos campos de Guantánamo.
A acumulação de poder autoritário depende, em parte, da disposição das pessoas em acreditar no poder que está sendo exercido. Em alguns casos, as declarações de Trump são como balões de ensaio, mas em outros casos, a afirmação ultrajante é sua própria realização. Ele desafia a vergonha e as restrições legais para mostrar sua capacidade de fazer tudo isso, mostrando ao mundo um sadismo desavergonhado.
As alegrias do sadismo desavergonhado incitam outros a celebrar essa versão de masculinidade, que não está apenas disposta a desafiar regras e princípios que regem a vida democrática (liberdade, igualdade, justiça), mas que projeta essas “alegrias” como formas de “libertação” de falsas ideologias e das limitações impostas por obrigações legais. O ódio exaltado agora se apresenta como liberdade, enquanto as liberdades pelas quais muitos de nós lutamos durante décadas são distorcidas e prejudicadas desacreditadas como “wokeísmo” moralista e repressivo.
A alegria sádica em questão aqui não é apenas de Trump: ela deve ser comunicada e amplamente apreciada para poder existir – é uma celebração comunitária e contagiosa da crueldade. Na verdade, a atenção que ele recebe da mídia alimenta essa onda sádica. Esse desfile de indignação e desafio reacionário precisa ser conhecido, visto e ouvido. Por isso, agora, o ato de simplesmente expor a hipocrisia será insuficiente. Não há um verniz moral a ser removido. Não, a demanda do público por uma aparência de moralidade por parte do líder foi invertida: seus e suas seguidoras vibram com a demonstração do desprezo que ele expressa pela moralidade e compartilham essa pulsão.
A demonstração descarada de ódio, o desprezo pelos direitos, a disposição de privar as pessoas de seus direitos à igualdade e à liberdade, proibindo o “gênero” e seus desafios ao sistema binário de sexo (negando a existência e os direitos das pessoas trans, intersexuais e não binárias), a destruição dos programas DEI, destinados a empoderar as pessoas que sofreram discriminação duradoura e sistêmica; a deportações forçadas de imigrantes e apelos para a completa desapropriação daqueles que sobreviveram, traumatizados, às ações genocidas em Gaza.
Raphael Lemkin, o advogado polonês-judeu que cunhou o termo “genocídio”, deixou claro que esse termo denota “um plano coordenado para destruir as fundações essenciais da vida de grupos nacionais (…) pode ser implementado eliminando-se todas as bases de segurança pessoal, liberdade, saúde e dignidade”. De fato, a transferência forçada de crianças é o quinto ato punível da onvenção sobre genocídio adotada em 1948.
Nem todas as formas de eliminação de direitos promovida por Trump cabem na categoria de genocídio, mas muitas delas expressam paixões fascistas. Negar direitos à saúde, reconhecimento legal e direitos de liberdade de expressão para pessoas trans, intersexuais e não binárias ataca os próprios fundamentos de suas vidas. Até mesmo a Suprema Corte conservadora considerou que a discriminação contra pessoas trans e não conformes com o gênero ou não coerentes constitui discriminação com base no sexo (Bostock v Clayton, 2020).
Portanto, não faz sentido dizer que os direitos das pessoas trans ameaçam a lei baseada no sexo, pois eles a ela pertencem e por ela devem ser protegidos. Reunir imigrantes em escolas e lares, deportá-los à força para centros de detenção e retirar seus direitos ao devido processo legal demonstra não apenas um claro desprezo por essas comunidades, mas pela própria democracia constitucional. A ameaça à cidadania inata ou jus terris desafia uma proteção constitucional básica e faz de Trump alguém que está acima das regras constitucionais e do equilíbrio de poderes.
Se continuarmos a nos sentir tomados pela indignação e paralisados pela estupefação diante de cada nova proclamação anunciada cotidianamente não conseguiremos discernir o que as conecta. Ser dominadas, dominados, dominades por suas declarações é exatamente o objetivo de seus pronunciamentos. Estamos, em grande medida, sob seu domínio quando ele nos captura e paralisa. Embora existam muitos motivos para estarmos enraivecidos, não podemos deixar que essa raiva nos nos inunde e paralise nossas mentes. Pois este é o momento para compreender as paixões fascistas que alimentam essa busca descarada por poderes autoritários.
As pessoas que celebram sua fúria e sadismo são tão capturadas por essa lógica quanto aqueles que estão paralisados de indignação. Talvez seja hora de nos distanciarmos dessas paixões para entender como funcionam, mas também para encontrarmos nossas próprias paixões: o desejo de uma liberdade igualmente compartilhada; de uma igualdade que cumpra as promessas democráticas; de reparar e regenerar os processos vivos da Terra; de aceitar e afirmar a complexidade de nossas vidas corporificadas, de imaginar um mundo em que governos apoiem a saúde e a educação para todos, em que todes vivamos sem medo, sabendo que nossas vidas são interdependentes e igualmente valiosas.
Artigo publicado originalmente no The Guardian
Fonte em Portugues: Sexuality Policy Watch
tradução: Tatiane Amaral e Sonia Corrêa
revisão: Carla Rodrigues