Por Melissa Gervásio, para Cobertura Colaborativa Paris 2024

Em 12 de setembro de 1913, em Oakville, Alabama, nascia James Cleveland Owens, conhecido como Jesse Owens. Filho de um pobre agricultor e neto de escravizados, Owens era o caçula entre dez irmãos e, desde muito cedo, precisou trabalhar na colheita de algodão para ajudar no sustento da família. Aos nove anos, mudou-se com sua família para Cleveland, Ohio, na esperança de escapar da segregação racial que predominava no sul dos Estados Unidos. 

Foi em Cleveland que James passou a ser chamado de Jesse. Em seu primeiro dia de aula, ao ser perguntado sobre como se chamava, timidamente respondeu “J.C.“, usando as iniciais do seu nome. Porém, devido ao seu forte sotaque sulista, o professor entendeu Jesse. Por estar vivendo sua primeira experiência em uma escola mista, Owens optou por não corrigir o professor, dando início à história do nome que se tornaria lendário.

Início no atletismo

A trajetória esportiva de Jesse Owens começou no ensino médio, quando seu talento para corridas foi notado por seu professor e primeiro treinador, Charles Riley. Em 1933, Owens venceu 75 das 79 provas em que competiu, estabelecendo um novo recorde mundial nas 100 jardas. Devido aos excelentes resultados, Owens despertou o interesse de várias universidades e optou por ingressar na Universidade Estadual de Ohio.

Foto: AP

Em 1935, durante um torneio universitário, Jesse Owens ganhou destaque ao quebrar três recordes mundiais em apenas 45 minutos. Ele impressionou ao atingir 8,3 metros no salto em distância, vencer a prova de 220 jardas (aprox. 201 metros) com obstáculos e brilhar no revezamento 4×100 metros. 

Naquela época, a Universidade Estadual de Ohio não oferecia bolsas de estudo para atletismo, e Jesse Owens precisou trabalhar como ascensorista para arcar com suas despesas. Além disso, devido à segregação racial, Owens não tinha permissão para residir no campus e, por isso, morava em um pequeno apartamento compartilhado com outros estudantes negros.

Apesar de todas as adversidades, Jesse Owens nunca considerou abandonar a corrida. 

“Sempre adorei correr… era algo que se podia fazer sozinho e com a nossa própria força. Você poderia ir em qualquer direção, rápido ou devagar, como quisesse, lutando contra o vento se quisesse, buscando novas paisagens apenas com a força de seus pés e a coragem de seus pulmões.” – Jesse Owens 

Foto: arquivos da Ohio State Athletics

Jogos Olímpicos de Berlim

O ano era 1936 e Berlim, capital da Alemanha, se preparava para sediar os Jogos Olímpicos de Verão. O ditador Adolf Hitler havia compreendido que a realização do maior evento esportivo do mundo seria o cenário perfeito para promover sua ideologia política e a narrativa de supremacia branca.

Com participação de 49 países, os Jogos Olímpicos de Berlim foram os primeiros a serem transmitidos pela televisão. Mais de quatro milhões de ingressos foram vendidos, criando um ambiente ideal para os propósitos do líder nazista. A Alemanha detinha a maior equipe, com 348 atletas. Os Estados Unidos vinham logo em segundo, com 312 atletas, sendo 18 negros. 

No dia 1º de agosto de 1936, foram oficialmente abertos os Jogos Olímpicos de Berlim.

Foto: Central Press/Getty Images

3 de agosto de 1936: um Jesse Owens no caminho

Tudo parecia seguir conforme o planejado até que um atleta afro-americano de 22 anos surgiu para desafiar as narrativas de Adolf Hitler. Para início da frustração do líder nazista, no dia 3 de agosto, Jesse Owens conquistou a primeira medalha de ouro nos 100 metros rasos com um tempo de 10,3 segundos. No dia 4, Owens derrotou o alemão Luz Long, em quem Hitler apostava todas as fichas para a conquista do ouro no salto em distância. Jesse impressionou ao saltar 8,06 metros, estabelecendo um novo recorde e confrontando as ideologias raciais do regime nazista. 

Foto: Austrian Archives/Imagno/Getty Images

No dia 5 de agosto, Jesse Owens conquistou a terceira medalha de ouro nos 200 metros rasos com um tempo de 20,7 segundos. Quatro dias depois, ele assegurou o quarto ouro ao liderar a equipe no revezamento 4×100 metros.

A brilhante performance de Jesse Owens fez com que todo o Estádio Olímpico de Berlim o aplaudisse de pé. Um jovem negro, neto de escravizados, havia conquistado a cena mundial.

“Eu vi a linha de chegada e sabia que 10 segundos seriam o clímax de oito anos de trabalho. Um erro poderia arruinar tudo. Então, por que eu deveria me preocupar com Hitler?” – disse Jesse Owens em entrevista publicada pelo The Guardian. 

Embora a Olimpíada de Berlim fosse vista como um potente instrumento político, para Jesse Owens, tinha um significado diferente.

“Eu não queria me envolver com política”, disse Owens sobre seus sentimentos na época. “E eu não estava em Berlim para competir contra nenhum atleta em particular. O objetivo dos Jogos, de qualquer forma, era dar o melhor de si. Como aprendi há muito tempo com Charles Riley, a única vitória que realmente importa é aquela sobre si mesmo”.

Foto: Hulton ArchiveGetty Images

“Cada vez que Owens vencia, Hitler virava as costas”

Em meio ao burburinho sobre se Adolf Hitler teria ou não parabenizado Jesse Owens, surge o jornalista William L. Shirer, naquela época, correspondente do The New York Times em Berlim. Em relato divulgado em 1984, William Shirer disse:

“Owens pode ter pensado que Hitler acenou para ele, mas certamente estava enganado. Minha própria lembrança é de que, cada vez que Owens vencia, Hitler virava as costas para ele e conversava com alguns dos seus comparsas nazistas. Eu, é claro, não podia ouvir o que ele dizia, mas achava que tinha uma ideia bastante clara. Isso acabou sendo confirmado. Um dos capangas nazistas era Baldur von Schirach, o líder da Juventude Hitlerista cuja mãe era americana, que mais tarde revelou em suas memórias o que Hitler havia dito: ‘Os americanos deveriam se envergonhar por permitir que suas medalhas fossem conquistadas por negros. Eu mesmo não apertaria a mão de um deles’.”

Foto:Getty Images/Hulton Archive/Fox

“Depois de todas aquelas histórias sobre Hitler, voltei para o meu país e não pude entrar pela porta da frente do ônibus. E agora, qual é a diferença?”

Jesse Owens triunfou em solo nazista, mas ao retornar aos Estados Unidos, continuou a enfrentar a dura realidade da segregação racial. Mesmo sendo o primeiro atleta norte-americano a ganhar quatro medalhas de ouro em uma única Olimpíada, Owens não foi recebido pelo presidente Franklin Delano Roosevelt, que só prestou homenagem aos atletas brancos.

“Não fui convidado para apertar a mão de Hitler, mas também não fui convidado para ir à Casa Branca para apertar a mão do presidente”, disse Owens em entrevista na época. “Na verdade, foi Roosevelt quem me ignorou; nem mesmo um telegrama foi enviado”.

Jesse Owens chegou a ser recebido com carreata a céu aberto em Nova York, mas ao chegar no hotel onde seria homenageado, foi direcionado a entrar pela porta dos fundos e obrigado a utilizar o elevador de serviço.

“Eu tinha quatro medalhas de ouro, mas eu não podia comê-las”

Nem mesmo a glória olímpica conquistada por Jesse Owens em Berlim foi suficiente para garantir uma vida confortável para ele, sua esposa Ruth e suas três filhas. A cor de sua pele era o único detalhe notado em um país marcado pelo ódio e pela segregação. Para sustentar a família, Owens precisou recorrer a diversas fontes de renda, incluindo corridas contra motos, cães e até cavalos.

“As pessoas diziam que era humilhante para um campeão olímpico correr contra um cavalo”, mas o que eu poderia fazer?”, disse Owens. “Eu tinha quatro medalhas de ouro, mas não se pode comer quatro medalhas de ouro”.

Uma luz no fim no túnel

Foto: Wikipedia

A situação da família Owens começou a mudar em 1950, quando Jesse passou a realizar palestras para corporações e instituições, incluindo a Ford Motor Company e, mais tarde, o Comitê Olímpico dos Estados Unidos. Além disso, Owens abriu sua própria empresa de relações públicas e rapidamente se tornou uma figura muito requisitada, viajando por todo o país para promover a importância do espírito esportivo. 

Foto: Fox Photos/Getty

“I have changed” (Eu mudei)

Enquanto em Berlim Jesse Owens parecia indiferente à causa pela qual lutava, em 1972, quando lançou seu livro “I Have Changed“, ele demonstrou uma perspectiva completamente diferente.

“Percebi agora que a militância, no melhor sentido da palavra, era a única resposta no que dizia respeito ao homem negro”, disse Owens. “Qualquer homem negro que não fosse militante em 1970 era cego ou covarde”.

Foto: USA TODAY Sports

Jesse Owens morreu em 31 de março de 1980, aos 66 anos, vítima de câncer no pulmão. Em 2016, o ex-presidente dos Estados Unidos Barack Obama prestou homenagens a grandes lendas negras dos Jogos Olímpicos, como Jesse Owens, Tommie Smith e John Carlos.