Por Hyader Epaminondas

Em seu mais recente trabalho, o cineasta Noah Baumbach dirige “Jay Kelly”, um drama de autoconhecimento que revela a total desconexão do ser humano com sua própria identidade, estrelado por George Clooney e Adam Sandler.

O filme teve a honra de encerrar a 49ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo. Curiosamente, enquanto esta edição da Mostra celebrava conexões entre pessoas, histórias e culturas, a escolha de “Jay Kelly” funciona quase como uma antítese: um retrato de isolamento, fragmentação e distância interior.

Baumbach, conhecido por dissecar relações humanas e crises existenciais com delicadeza, conduz um elenco que reúne duas presenças fortes da indústria, tornando o filme um espelho perturbador do tema que a Mostra buscava explorar.

A performance de Sandler é tão intensa que acaba ofuscando qualquer brilho que Clooney pudesse ter na projeção. Ironia: essa percepção evidencia, na verdade, a fragilidade do próprio filme. Ambos interpretam Jay Kelly, mas de maneiras opostas. Clooney dá vida ao astro que se perdeu diante do personagem que criou ao longo da carreira, um homem isolado, tentando reencontrar laços importantes quando a sombra da morte se aproxima. Sandler, por sua vez, é Ron, o empresário incansável por trás do ator, que representa tudo o que Jay perdeu e se esforça para proteger o que ainda lhe resta.

A tensão entre os dois não está apenas no conflito de personalidades, mas na forma como se relacionam com a própria vida: enquanto Jay se vê preso em memórias e escolhas passadas, Ron atua como guardião e contraponto, lembrando daquilo que ainda é possível salvar, se esforçando para preservar o que ainda lhe resta pelos bastidores. Essa dinâmica transforma cada cena em um jogo delicado de presença e ausência, de poder e vulnerabilidade, revelando o drama íntimo de dois homens que precisam, finalmente, se reconectar com o mundo ao seu redor.

Esse contraste, ao ser lido sob o prisma do duplo lacaniano, em que o “Outro” não é apenas uma réplica, mas o espelho que reflete nossas fraturas internas, desejos interrompidos e ausências silenciosas, ganha contornos simbólicos. Clooney é a imagem que Kelly construiu, o ideal que já se tornou refém de si mesmo, enquanto Sandler é o que Kelly jamais foi totalmente ou aquilo que tenta manter à sombra desse ideal. Juntos, eles formam o duplo lacaniano em tela: duas versões do mesmo “eu”, uma etérea, outra lutando para se manter inteira.

No entanto, o roteiro falha em sustentar o peso dessa dinâmica. A narrativa se move como uma pluma, leve e translúcida, sem firmeza ou consequência. As cenas que prometem densidade emocional, confrontos internos ou diálogos cortantes, muitas vezes se dissolvem, deixando apenas eco.

O que poderia ter sido uma exploração radical da identidade, da fama e da ambiguidade do “ser” sob o olhar do outro transforma-se numa homenagem melancólica, suave e inofensiva de um ex-galã de seriado médico.

O contraste entre os atores, que poderia gerar tensão ou profundidade, se dissolve na leveza vazia da narrativa. Em seu momento de renascença artística, Sandler domina a cena, mas não por revelar ou destruir, e sim por sustentar sua luz apenas para evidenciar o vazio da história, refletindo o papel apagado de Clooney. Este, por sua vez, surge como o rosto que brilhou, mas cuja trajetória interna já se perdeu. O filme passa, então, a falar menos sobre quem é Jay Kelly e mais sobre o que deixou de ser ou sobre o que permitiu que o outro continuasse sendo por ele.

Baumbach se propõe a explorar a complexidade do duplo, do desejo e da identidade sob o eco do outro, mas tropeça na execução. O resultado é um filme excessivamente polido, uma homenagem esvaziada que permanece suspensa entre a reflexão e a leveza, entregando apenas fragmentos poéticos de um drama que tinha potencial para muito mais.