Por Hyader Epaminondas

Quando anunciaram que Andy Muschietti voltaria para Derry para desenvolver um prólogo dos filmes originais, eu simplesmente não dei bola. Ainda que eu admire profundamente o que ele conseguiu criar nos dois filmes adaptados da obra-prima de Stephen King, o desastre técnico e argumentativo de “The Flash” havia deixado um gosto azedo que parecia impossível de tirar da boca.

E talvez por isso eu tenha entrado no primeiro episódio de “IT: Bem-Vindos a Derry” quase por obrigação, semanas após a sua estreia, quando o hype da série já estava estabelecido nas redes sociais. Mas tudo isso durou só até a metade daquele episódio inicial, quando percebi que algo ali estava acontecendo de muito bom, quase hipnótico, enquanto a trama se desenrolava bem lentamente.

A série não apenas devolve a Muschietti o brilho criativo, como também apresenta uma Derry vibrante e inquieta, um lugar que nunca adormece por completo. O cenário se expande em múltiplas conexões com outros trabalhos de King e seu universo compartilhado, entre menções sutis e participações especiais de tirar o fôlego. Tudo isso enquanto a narrativa transita livremente entre passado, presente e futuro, construindo a mitologia da franquia de forma invertida, como se a história fosse contada de trás para frente.

Esta primeira parte inaugura um plano maior de três temporadas, cada uma centrada em um incidente provocado pela Coisa em seus ciclos de 27 anos antes dos acontecimentos do primeiro filme. Derry é uma cidade reimaginada, inspirada na estética dos anos 60, com cores ultrassaturadas no ideal da falácia do sonho americano. A temporada respira através desse novo grupo de crianças que, enquanto tentam desvendar um caso de injustiça racial, carregam a inocência e o desespero próprios do universo de King. Pedalando pela cidade com os olhos arregalados, elas avançam rumo a um mal cósmico circense que dança nos canais de esgoto de Derry.

Quando percebi, fui fisgado por essa atmosfera que oscila entre o terror surreal e a fantasia grotesca. Não havia mais retorno e eu já estava flutuando para dentro da história. Maratonei a série inteira, que conta com apenas oito episódios, como quem é puxado por um redemoinho inevitável, consumido por uma voracidade que rivalizaria facilmente com o próprio Pennywise farejando medo nas rachaduras estruturais de Derry. Mesmo partindo de um desfecho já previsível, por funcionar como prólogo dos filmes originais, ela consegue manter seu público animado ao inovar na narrativa a partir da perspectiva adotada.

O motor emocional dessa temporada é a conexão inesperada entre as crianças. E aqui está talvez a maior surpresa da série. Onde poderia haver apenas fórmulas recicladas e desgastadas, surge um elenco que funciona com uma química orgânica. Eles carregam um tipo de vulnerabilidade em que cada um tem sua pequena tragédia, seu pequeno brilho, suas pequenas maneiras de sobreviver em uma cidade que respira medo pelos bueiros. E conforme Derry vai revelando suas camadas mais sombrias, as crianças respondem não com heroísmo óbvio, mas com uma mistura de espanto, teimosia e coragem silenciada, que funciona pela naturalidade.

Em paralelo às histórias pessoais desse novo grupo, a série se ocupa em revelar o passado de Pennywise com o retorno excepcional de Bill Skarsgård. A explicação se utiliza dos novos personagens para elaborar uma história de origem linear entre os acontecimentos principais dos episódios, como ecos de uma entidade cuja presença é sentida antes mesmo de ser nomeada. Esses pedaços de origem revelados ampliam o terror, porque reforçam a sensação de que a Coisa é um fenômeno, uma fome antiga que molda a cidade tanto quanto a cidade o molda.

Quando Derry queima, o horror humano supera o sobrenatural

Outro ponto inesperado é a inserção da sabedoria dos povos originários na trama. A série trata esse conhecimento como uma força orgânica que atravessa gerações, como uma memória viva que se recusa a ser apagada. Essa presença funciona como contraponto direto ao esquecimento que alimenta o mal de Derry: enquanto a cidade tenta soterrar suas próprias histórias, essas vozes ancestrais as desenterram como um metacomentário dentro da própria narrativa.

E, junto com a trama de desenterrar artefatos antigos, havia algo mais subterrâneo se movendo sob a superfície, uma inquietação que não vinha dos esgotos, mas das próprias estruturas daquela sociedade. Cada episódio insistia em revelar pequenas verdades incômodas, como se arrancasse pedaços de tinta velha das paredes para mostrar o mofo apodrecido que sempre esteve ali. Era como se tudo, desde a origem de Pennywise até os dramas pessoais das crianças, estivesse empurrando a história para um ponto de ruptura, onde o horror humano e o sobrenatural se tocariam de forma irreversível.

Cada episódio parecia abrir uma nova camada da história, inspirada em trechos curtos do livro de King, até revelar um nervo exposto. E então veio o penúltimo capítulo, o mais ousado da temporada, aquele que recria o incêndio no Black Spot, um bar criado e frequentado pela comunidade negra da cidade, transformando o massacre racial em uma ferida aberta que arde mesmo através da tela.

É um evento tão brutal, tão impregnado de ódio e silêncio histórico, que até o palhaço carnívoro parece recuar para as sombras, cedendo espaço para que o verdadeiro horror, o humano, o cotidiano, o que consome vivo, corrói e incinera sem ajuda de monstros, ocupe toda a cena como uma espécie de trauma fundador do próprio espírito de Derry. O episódio expõe como sociedades, reais ou ficcionais, se alimentam desse trauma, como sua natureza corrosiva não nasce do sobrenatural, mas da cumplicidade cotidiana, dos olhares desviados e das estruturas que perpetuam o discurso de ódio.

É importante ressaltar que Pennywise apenas potencializa a maldade que já existe, ele não a cria do zero. E, mesmo que a trama racial não tenha sido desenvolvida com a complexidade necessária para esse desfecho, com o arco sendo constantemente colocado como segundo plano e contando com apenas quatro figuras orbitando a narrativa, Dick Halloran, mais conhecido pela participação em “O Iluminado”, Leroy e Charlotte Harlon, avós de Mike nos filmes originais, e Hank Grogan, vítima de uma falsa acusação motivada por racismo, ainda assim havia ali um impacto genuíno.

Esses personagens funcionavam como pontos de fratura, pequenas fissuras por onde a realidade sangrava sem pedir licença dentro da história das crianças protagonistas e do mal cósmico. Mesmo quando o argumento não se aprofunda o suficiente, permanece a sensação de que o verdadeiro terror não está no retorno cíclico do palhaço, e sim na facilidade com que a comunidade aceita o sofrimento alheio como parte da paisagem, enquanto convive com a violência, normalizando, silenciando e, em muitos casos, legitimando.

É justamente nessa tensão entre o sobrenatural e o horror social da nossa realidade que a temporada encontra relevância, ao exaltar que em Derry, assim como em qualquer outro lugar marcado por violência e esquecimento, as “coisas” perigosas sempre estão por perto, mas raramente precisam de maquiagem de palhaço ou dentes afiados para destruir vidas com seus discursos inflados em ódio.

O verdadeiro monstro é sempre aquele que a gente escolhe fingir não enxergar.