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‘Instruments of a Beating Heart’ e a pressão escolar japonesa
Curta documental mostra pressão de aluna japonesa na preparação de uma apresentação escolar.
Por Rodrigo Dutra
É comum ouvirmos falar sobre como as escolas japonesas são rigorosas. Os métodos de ensino são exaustivos e os alunos, desde bem novos, precisam superar desafios e buscar uma espécie de excelência. Dentro desse processo, não é necessário apenas o sucesso e realização pessoal, mas também o coletivo.
Em ‘Instruments of a Beating Heart’ (Instrumentos de um Coração Pulsante), a documentarista britânica/japonesa Ema Ryan Yamazaki (@emaexplorations) e sua equipe acompanham Ayame. A aluna da segunda série do ensino fundamental e sua turma se preparam para uma apresentação de “Ode à Alegria”, de Beethoven, na apresentação de boas-vindas aos novos estudantes do colégio.
Durante as audições para a orquestra infantil, os professores deixam claro que os alunos que passarem precisam trabalhar em conjunto, de forma extensiva, para que tudo corra bem. À medida que as vagas são preenchidas, vemos o impacto dos resultados nos alunos que não passam e, principalmente, nos que passaram e precisam se apresentar.
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Créditos: Reprodução/NYTIMES
Em um plano, enquanto a professora diz os nomes dos alunos que passaram, vemos Ayame levantando os braços e comemorando, mesmo que seu nome não tenha sido chamado. É como se Yamazaki quisesse nos mostrar a natureza desse coletivismo. Que mesmo no momento de tristeza, a primeira reação de Ayame foi comemorar a vitória da colega. Logo em seguida, vemos um menino chorando. Quando a professora pergunta o motivo, ele aponta para uma colega e diz que queria muito que ela passasse.
A fotografia do curta é composta por enquadramentos bem fechados nos rostos dos alunos. Sempre acompanhamos Ayame em foco, enquanto todo o resto embaça. Seus olhos por cima da máscara sempre estão vidrados em alguma coisa: sejam nos instrumentos da orquestra, nas partituras ou nas instruções de seus professores.
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Ayame é a alma do filme. Através da menina, acompanhamos todo o processo de entrar para a orquestra e tudo que a tarefa requer dela. E em um documentário é até mais impressionante, como se o arco da protagonista tivesse sido roteirizado. É surpreendente ver a quantidade de planos e momentos capturados por Yamazaki e sua equipe.
As reações de Ayame ao processo de audições, sua eventual entrada na banda com a função de tocar o címbalo, os treinos. E é através dessa jornada que o coração de ‘Instruments of a Beating Heart’ é formado. No meio do processo, a menina passa pelos mesmos percalços que o protagonista de ‘Whiplash’. A figura de Enomoto, professor de música que conduz a orquestra, é semelhante ao de Terence Fletcher e ele se torna o antagonista do curta (ainda que por pouco tempo).
Enomoto é rigoroso, exigente e não poupa broncas aos alunos que falham. Sua função é manter a orquestra em harmonia e sobra para Ayame tocar no tempo errado. Em uma cena, a menina erra e é chamada atenção por Enomoto. O nervosismo faz com que a menina erre novamente e se justifique dizendo: “se ao menos eu tivesse minha partitura…”, ao que Enomoto responde com uma pergunta aos outros alunos: “Algum de vocês aqui precisam de uma partitura para tocar? Podem me explicar por que vocês não precisam?”, e toda a turma responde em uníssono: “Porque nós praticamos”.
Essa pressão leva Ayame a duvidar de sua permanência na orquestra e consequentemente na apresentação. Em um dos momentos mais sensíveis do filme, a menina se senta num corredor escuro enquanto olha para o pátio do colégio com o resto da banda praticando. Com bastante ternura e sensibilidade, a professora Watanabe se aproxima de Ayame e pergunta o que houve. Ela pergunta se Ayame está bem e se “lhe falta confiança” para a apresentação. A aluna explica que tem medo de ser chamada atenção em público novamente.
A professora então diz que, se ela for repreendida novamente, ela estará lá para ser repreendida junto com Ayame. Essa reafirmação da professora dá a segurança que Ayame precisava para voltar a tocar na banda e conseguir se apresentar nas boas-vindas da primeira série.
“Como uma Pessoa Japonesa é Feita”
“Se você se pergunta por que o Japão é como é, por que nossos trens chegam no horário, por que não há lixo nas ruas — não nascemos assim” diz Yamazaki à Deadline. “Eu acho que somos realmente ensinados a ser de uma certa maneira. E quando olho para trás e penso sobre aqueles seis anos [da escola primária], eu aprendi a ser japonesa”.
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Yamazaki é uma documentarista nascida em Tóquio, mas com raízes em Nova Iorque, o que lhe dá uma visão única de dentro e fora dos costumes japoneses. A construção do curta perpassa por toda a pressão que o método de ensino rigoroso das escolas japonesas imprime nos alunos. Durante todo o dia a dia escolar, ouvimos dos professores frases como: “Você tem uma responsabilidade, acerte no seu tempo”; “É só praticar que você consegue”; e “Se não estão aptos a isso, podem desistir agora”.
Essas frases vão em contraste com o sentimento de coletividade. Os alunos aprendem que precisam ser os melhores para os seus colegas, que ao atingir um grau de excelência, beneficiam o próximo. Mas, durante todo o processo, a abordagem é sempre a de cobrar e nunca a de acolher. Demora até que Ayame ouça palavras de conforto de alguém que não sejam seus colegas.
Para além dos comentários sobre a organização e hierarquia escolar, os momentos mais sensíveis do filme se dão nas ações dos próprios alunos. Eles superam as adversidades do processo e se apoiam do começo ao fim.
Perto do final do período de ensaios, Ayame é consolada por outros colegas: “Não vamos te deixar para trás”, diz um menino. “Estamos todos juntos nessa”.
Pouco antes da apresentação, as crianças se reúnem para um último ensaio. Ayame, motivada pelo carinho dos colegas e de Watanabe, se sai bem no ensaio. Após a aula, o professor Enomoto — antagonista da história — diz estar orgulhoso da menina.
Ao fim, Enomoto pergunta: “Quem acha que fui rigoroso?”. Apenas Ayame levanta a mão. O professor fala que sabe que foi rigoroso, que só foi porque sabia que os alunos iriam conseguir superar e que graças a isso todos são capazes de fazer um trabalho bem feito.
As palavras não são necessariamente tão reconfortantes assim mas, para Ayame, é suficiente.
Após a apresentação ser um sucesso, Ayame pergunta aos colegas: “O que vocês acham que nós somos? Parte de um coração pulsante?”. Ao que outra aluna responde: “Somos todos parte de um mesmo coração, que juntos formamos o formato dele. Se um de nós está desbalanceado, então todo o coração despedaça”. Ayame retruca: “mas que instrumentos implacáveis nós somos…”
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‘Instruments of a Beating Heart’, mesmo que pareça mais leve que outros indicados ao Oscar de Curta-Metragem Documental, nos apresenta uma história muito sensível sobre o desenvolvimento sob a sombra da expectativa; sobre como a pressão externa exagerada pode nos quebrar; e sobre como através da coletividade e construção de um espaço seguro, conseguimos atingir a excelência.
‘Instruments of a Beating Heart’ está disponível no Youtube do The New York Times
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Texto produzido em colaboração a partir da Comunidade Cine NINJA. Seu conteúdo não expressa, necessariamente, a opinião oficial da Cine NINJA ou Mídia NINJA.